por uma leitura sem imagem...
São poucos os que arriscam ler e investigar os textos de Deleuze. Tem de ter muita coragem, ou como dizem aqui na periferia “tem de ter bagos” para aprofundar em questões concernentes a tantas coisas que fogem ao pensamento ávido por imagens. Alguns professores se surpreendem; outros ficam um tanto invejosos – eu vejo alguns olhares maléficos –; muitos admiram e reconhecem a capacidade e a excelência na escrita, e igualmente a qualidade no uso preciso da última flor do Lácio – nossa herança é vulgar.
Apresento-lhes, a partir daqui, dois excertos (parte da introdução e conclusão) da pesquisa teórica do meu amigo e parceiro de escrita Sérgio Lima Nastasi, que comprovam como ler e escrever a respeito do pensamento de Deleuze não é tão fácil quanto contemplar calmamente os raios e trovões de uma grandiosa tempestade. Talvez a tempestade venha com as palavras vertiginosas do pensamento e da memória que não cessa na representação dos signos – espero que aqui ninguém confunda com astrologia -, mas que procura se efetivar, hic et nunc, pela Diferença e Repetição:
Introdução.
O livro Diferença e repetição, do filósofo francês Gilles Deleuze, foi a sua tese principal[1] de doutoramento e é considerado por muitos pesquisadores o ponto inicial de sua Filosofia – como o próprio autor também assinala. A leitura de tal obra nos permite, então, diversas articulações com conceitos construídos a seguir, principalmente aqueles que aparecem em seus escritos em parceria com Félix Guattari[2]. Na presente pesquisa, nosso objetivo será abordar a crítica da representação realizada nessa obra.
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Luiz Orlandi escreveu que Deleuze, em certo sentido, armou “uma filosofia da diferença oposta à primazia do idêntico”[3], uma filosofia que, nas páginas de Diferença e repetição, não oferece apenas uma crítica na dimensão da linguagem, objeto de nossa pesquisa, mas que promove o destronar desse “primado” em favor das multiplicidades, das inquietantes heterotopias, como pontuava Michel Foucault, que
(...) solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham, porque arruínam de antemão a “sintaxe”, e não somente aquela que constrói as frases — aquela, menos manifesta, que autoriza “manter juntos” (ao lado e em frente umas das outras) as palavras e as coisas[4].
E ainda Orlandi, em um prefácio que dedica ao livro Juízo e verdade em Deleuze, de Daniel Lins, se refere à importância a qual o nosso autor
(...) mantém firme seu interesse em desenvolver condições que o tornem capaz de uma difícil astúcia: a de experimentar, mesmo através de meios representativos, as zonas sub-representativas, as zonas intensivas de cuja mobilidade depende sua própria constituição, mas das quais ele não é sujeito (...). Como é possível exprimir alguma coisa por fora dessas clausuras [da representação], e alguma coisa que seja interessante, que valha a pena, que valha tanto esforço? Não há receitas para isso. Há encontros, acontecimentos que tornam palpável essa possibilidade: há ações, amores, ódios, há certos filmes, documentário ou não, há romances, poemas, músicas... e também textos, é claro[5].
Desse modo, tendo o problema da representação como objeto, observaremos quatro elementos que definem o coração desta análise: 1º) Generalidade e singularidade; 2º) Acontecimento; 3º) Apresentação e re-apresentação; 4º) Imagem do pensamento e pensamento sem Imagem.
A generalidade será o âmbito no qual falaremos em ideia geral e conceitos genéricos, sua forma ou caráter ordinário assumido pelos critérios de igualdade e semelhança. Ao analisarmos este domínio das generalizações, mostraremos como se dá a sua oposição à singularidade, que tem por aspecto, por sua vez, ser extraordinária com seus processos notáveis.
Por Acontecimento entenderemos as rupturas, as novidades e até mesmo os espaços diferenciais que são os meios onde as singularidades se potencializam[6]. Ao longo do texto, chamaremos de zonas ou topos originais – as heterotopias –, sempre que evocarmos esses espaços diferenciais. A importância da noção de Acontecimento para a nossa pesquisa deriva da necessidade de explicar os dois seguintes aspectos. Em primeiro lugar, que os pontos singulares ou notáveis aparecem verticalmente como intensos, ao passo que, em segundo lugar, os pontos regulares ou ordinários surgem horizontalmente como extensos. Perceberemos, então, que as zonas verticais desses pontos notáveis são espaços intensivos, ou seja, as próprias rupturas. Veremos, assim, como os encontros são formados e por que são acontecimentos.
Entenderemos como os termos Apresentação e re-apresentação encerram, de certo modo, a nossa leitura de Diferença e repetição, pois que são por meio de seus elementos que em cada capítulo faremos uma conexão com as outras noções. Articularemos, notadamente, tais conceitos por meio da leitura da obra As palavras e as coisas, de Michel Foucault (publicado em 1966), livro em que o autor nos esclarece os liames da representação. Assim sendo, compreenderemos o porquê de a representação consistir ou mesmo aproveitar-se de uma organização rigorosamente composta pelas seguintes similitudes: identidade e semelhança, oposição e analogia.
Após essas considerações, descreveremos a última tensão que provocaremos entre representação, diferença e repetição. Com a Imagem do pensamento, percorreremos o capítulo central da tese de Deleuze em que o autor agencia um pensamento sem Imagem em oposição aos modelos que desprezam as forças intensivas, singularidades e os envolvimentos dos pontos notáveis em suas heterotopias. Por um pensamento do Acontecimento em vez dos regulamentos, por assim dizer, ou condições exigidas pela Imagem que se forma e se estabelece dogmática. Tal Imagem subordina a tarefa filosófica envolvendo-a num modelo regular e limitador (...).
Pois bem, com isso queremos dizer que podemos realizar múltiplas leituras de Diferença e repetição. Porque Deleuze insiste numa coexistência de conceitos que desencadeiam fluxos numa série de desdobramentos, há vários centros e modos de percorrê-los (...).
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Conclusão.
Armamos uma tensão entre representação, diferença e repetição. Em cada momento desta pesquisa apontamos como a representação provoca uma dificuldade a essas noções. Aliando-se, entre outros, a Nietzsche e a Foucault, Gilles Deleuze desenvolveu uma crítica aos elementos ou categorias da representação: identidade, semelhança, analogia e oposição. Estas quatro raízes silenciosas e necessárias à tarefa do re-apresentar encerram a diferença numa estrutura ordinária, ou seja, tratam de submetê-la ao Mesmo. Todavia, a diferença é anterior a toda estrutura, ela é pura afirmação e não é carregada ou movida pelo negativo como na dialética hegeliana. Deste modo, se há repetição, o que retorna não é o Mesmo, mas a diferença. O eterno retorno nietzschiano exige a diferença dessa repetição diferencial como gatilho, e não o Mesmo. Este afirmativo Devir heraclitiano nos apresenta, em última análise, um novo espaço e um outro tempo a todo o tempo, o tempo todo. Para a repetição, vimos que o problema da representação é o de permitir uma repetição conservadora, uma reprodução, pois dita uma segunda, uma terceira, uma quarta vez etc. a quaisquer Acontecimentos. O problema da representação para a diferença é o de constituir uma repetição hipotética: as palavras como “pseudo-repetição” das coisas. Mesmo uma representação orgíaca ou infinita vincula a afirmação da diferença sob o conceito. Assim, vimos que o conceito da diferença não pode ser encontrado sob o Mesmo: o que poderemos localizar nestas condições será tão-somente uma diferença conceitual dada pelos níveis genéricos e específicos da lógica aristotélica.
Após esse panorama geral das noções diferença e repetição e, consequentemente do problema da representação, explicamos os oito postulados da “Imagem dogmática do pensamento” que respalda as categorias e concomitantes do campo da representação. Vimos surgir uma fuga de tais estruturas reguladoras por meio de processos e encontros de pontos notáveis, não considerando o pensamento como algo natural, mas como algo forçado, como uma força criadora: um pensamento sem Imagem. A nossa questão: o que podemos com um pensamento sem Imagem? Ora, a resposta não poderia ser tão clara e distinta, não poderia partir de tais princípios ou critérios da Imagem, mas, isto sim, ser deixada aberta às criações não combinadas por “formalismos lógicos”, porém criações que abalam o mundo monocêntrico da “quádrupla raiz”. Entendemos que esse campo da representação trata de expulsar as forças descêntricas da diferença temendo a perda de seus eixos bem ordenados claramente avessos às linhas criativas: diferençações capazes de deixar esse mundo de ponta-cabeça.
São os processos artísticos, finalmente, que resistem ao mundo ordinário e regulador da representação com as linhas de ação da diferença. Para Deleuze, é um pensar como criação e não um pensar por natureza que nos dá a potência para escaparmos do que impõe a representação. Assim, leremos os versos de Antonin Artaud, os desconcertantes fluxos de James Joyce, as inúmeras vertigens do proseado de Raymond Roussel etc. Sendo que podemos sair em defesa dessa expressão et cetera quando esta não busca representar o excesso ou o todo porvir, mas que o possibilita, não na linha do horizonte, porém numa rachadura vertical e intensa, nos apresentando brilhantes espaços diferenciais antes de um ponto final insuficiente e impotente para dizer, a partir dali, que depois tem mais...
[1] Referimo-nos à tese complementar apresentada por Deleuze na ocasião de seu doutoramento em 1968, também publicada em livro posteriormente: Spinoza e o problema da expressão.
[2] Trata-se da produção a quatro mãos com Guattari a partir da década de 1970 com O Anti-Édipo, até o início dos anos 1990 com o lançamento de O que é a filosofia?.
[3] ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 49. Tradução brasileira: Ana Lúcia de Oliveira.
[4] FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 13. Tradução brasileira: Salma Tannus Muchail.
[5] LINS, Daniel. Juízo e verdade em Deleuze. São Paulo: Annablume, 2004, pp. 9-10 (grifos nossos).
[6] Ainda que em outro contexto, Deleuze escreve que “quando reportamos o movimento a momentos quaisquer, devemos nos tornar capazes de pensar a produção do novo, isto é, do notável e do singular em qualquer um desses momentos” (Cf. DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 16. Tradução brasileira: Stella Senra, grifos nossos).