Amigos e amigas,
CAPÍTULO 1. O SABER DAS SIMILITUDES: A REPRESENTAÇÃO
COMO REPETIÇÃO
1.1 Preâmbulo
Na Renascença
(século XVI), o saber da similitude era a estrela guia de todo conhecimento ocidental.
Por essa relação dada pelas semelhanças, a representação era composta por uma
linguagem que, no jogo dos signos visíveis e invisíveis, permitia a ordenação
das coisas pelas palavras, ou seja, todo conhecimento daquele período era
obstinado a decifrar, interpretar e comentar todos os símbolos a partir de uma
representatividade semântica que configurava o mundo como pura repetição.
Neste primeiro
ponto, ao estudarmos o capítulo II intitulado “La prose du monde” da obra Les
mots et les choses, vamos ater-nos ao período marcado até o limiar do
século XVII, atribuindo a essa epistémê
algumas referências apontadas por Foucault a respeito de como se constituiu o
saber da linguagem daquele dado momento[1]. Trata-se,
portanto, de perguntar como se dava o conhecimento pela similitude: como
poderia ser pensada a ordem dada pelo discurso a partir das coisas que se
assemelhavam pelas palavras? Como eram reconhecidas as semelhanças entre uma ou
outra coisa?
Desta feita,
para responder a tais questões, poderemos, em linhas gerais, demarcar o
procedimento arqueológico adotado por Foucault – no qual é o norte de todo
nosso estudo – para, então, darmos prosseguimento às explicitações acerca das
similitudes essencialmente divididas em quatro partes que são primordiais ao
saber do século XVI. Logo em seguida, na parte final do capítulo, daremos vazão
para uma explicação geral relativamente à formação do “ser da linguagem”[2] e
a sua constituição em um sistema ternário
dos signos, com a intenção de ambientar o nosso leitor naquele primeiro
período que aparece descrito na referida obra.
1.2 Uma
conveniente vizinhança
A primeira
forma de similitude apresentada por Foucault é a chamada convenientia. Nela, todas as coisas ficam em contato, muito
próximas, a fim de conceberem vizinhanças que determinam o início e o fim de
cada uma das formas do saber. É um movimento circular da relação entre as
figuras que se misturam por conveniência, de tal modo que essa aproximação
entre as duas partes designa uma semelhança que, na realidade, é apresentada
como vizinhança dos lugares[3].
Destarte,
Foucault passa a analisar a convenientia
a partir de duas partes minuciosamente limítrofes, sendo a primeira justamente
composta pela
(...)
semelhança do lugar, do local onde a natureza colocou as duas coisas,
similitude, pois, de propriedades; pois, neste continente natural que é o
mundo, a vizinhança não é uma relação exterior entre as coisas, mas o signo de
um parentesco ao menos obscuro[4].
Contudo, essa
primeira parte se apresenta tão interior e “enigmática” que necessita de
decifração para dar vazão à segunda parte da conveniência, ao qual podemos
dizer que dela surgem novas semelhanças por uma sobreposição do que é comum.
Sendo assim, o parentesco entre as figuras do saber fica efetivamente visível,
deixando-as muito próximas, nessa dupla relação conveniente. E, assim, na
vizinhança dos lugares, acontece a aproximação das coisas por estarem
duplamente em conformidade umas em relação às outras, na medida em que são
emparelhadas.
Os lugares
tornam-se semelhantes, os signos se misturam em uma mesma e única relação. Por
ser “conveniente”, ou seja, semelhante, a transfiguração do mundo se dá como um
conjunto universal e ajustado entre as coisas. A convenientia aproxima os dois lados semelhantes numa relação puramente
circular, fazendo-os enlaçarem-se, por um contato de proximidade, em um mesmo espaço[5]. O
mundo se interioriza, o mesmo se efetiva como Mesmo, ou seja, cada lugar é o fim e o início de uma semelhança que
se torna acomodada às circunstâncias: “e de círculos em círculos, as
similitudes prosseguem retendo os extremos na sua distância”[6].
Por conseguinte, a convenientia é
como uma tensão entre lados opostos que se aproximam por um parentesco contínuo
e correspondente de parte a parte.
1.3 Correspondência
espelhar
Logo a seguir,
advém uma segunda similitude, a aemulatio.
Por emulação Foucault afirma ser a correspondência das coisas no mundo, em que
há uma “concorrência” a partir da distância entre elas. Aqui, o espaço já não
mais aproxima as coisas como era concebido na convenientia e, por mais que haja correspondência entre ambas as
similitudes, na aemulatio não há mais
uma relação circular entre as figuras do saber; tudo o que era enlaçado por
conveniência agora está distante, desatado, em uma relação sem retenção das
extremidades, em um rompimento com o lugar comum entre as coisas. É como a
imagem dispersa da relação entre espelho e reflexo, sem aproximações nem
contatos[7].
Contudo, por
haver uma distância entre as coisas, ocorre como que por “imitação” uma
representação do mundo a partir de uma relação espelhar; “por sua reduplicação
em espelho, o mundo abole a distância que lhe é própria; triunfa assim sobre o
lugar que é dado a cada coisa”[8].
Deste modo, não é possível afirmar qual é o verdadeiro lado, e qual é o seu
reflexo. Na emulação, as semelhanças entre os dois lados, por serem duplicadas,
desdobram-se em um afastamento que, repetidamente, faz os reflexos entrarem em
conflito, cujo espaço desse embate é justamente aquela distância referida à
correspondência entre as coisas no mundo.
Entretanto,
algumas dúvidas podem surgir acerca de qual dos dois lados do reflexo tem a
primazia em relação ao outro. Qual das duas partes pode ser considerada aquela
que tem um maior influxo sobre a outra? Qual é a imagem real e qual é a sua
imitação? A resposta dada por Foucault é a seguinte:
Frequentemente
não é possível dizê-lo, pois a emulação é uma espécie de geminação natural das
coisas; (...) a emulação não deixa inertes, uma em face da outra, as duas
figuras refletidas que ela opõe. Pode ocorrer a uma ser mais fraca e acolher
forte influência daquela que vem a refletir-se no seu espelho passivo[9].
E essa
passividade, segundo exemplifica Foucault, compara o êmulo da terra com a
“força” das estrelas; sendo ela – a terra – apenas o reflexo estelar, cujo
embate não está em posição de força igualitária entre as duas partes, ou seja,
o céu tem forte influência sobre a terra, sem que esta lhe seja um adversário à
altura. Por conseguinte, apresenta-se aqui, a descrição feita por Crollius, ao
qual fica válida esta afirmação a respeito da inércia da terra em relação ao
céu que, sem veemência, reflete-o de forma idêntica:
As
estrelas (...) são a matriz de todas as ervas, e cada estrela do céu não é mais
que a prefiguração espiritual de uma erva tal como a representa e, assim, como
cada erva ou planta é uma estrela terrestre olhando o céu, assim também cada
estrela é uma planta celeste em forma espiritual, a qual só pela matéria é
diferente das terrestres (...), as plantas e as ervas celestes estão viradas
para o lado da terra e olham diretamente as ervas que elas procriaram,
infundindo-lhes alguma virtude particular[10].
Mas a
similitude da emulação também pode ser um embate entre forças iguais, ou ainda,
pode haver somente a separação de uma única coisa que se reflete em si mesma,
com o mesmo “peso” de influência. Não há mais leis do espaço, muito menos há
alguma distância entre duas figuras – ou entre dois “espelhos” que se refletem –
de forma calma e passiva, como simples imagem, silenciosamente espelhada, de
uma sobreposta à outra. A distância é, na realidade, o espaço entreaberto na
qual ficam visíveis as figuras que a emulação transpõe. Tudo, aqui, mais uma
vez, se assemelha em uma relação de “posse” entre as duas partes. O duplo é
reduplicado pelo reflexo do espelho que, por seu turno, torna-se infinitamente
semelhante, sem ser conveniente, como um grande competidor de si que concorre
entre si em um mesmo eixo.
1.4 Convenientia
e aemulatio superpostas
A analogia caracteriza-se como a terceira
forma de similitude; provavelmente este conceito é entendido de maneira diversa
no século XVI, relativamente ao que se considerava por ἀναλογία[11]
no pensamento desde a Grécia Antiga à Idade Média. No período da Renascença,
esta analogia abarca as duas formas
de similitude anteriores – convenientia
e aemulatio – em uma superposição de
uma sobre a outra. Lembremos que a primeira se dá pela linguagem da formação
das coisas em círculos gradativamente aproximados em um mesmo espaço[12].
A segunda representa-se pelo duplo confronto entre as coisas que se assemelham
na distância refletida em um mesmo eixo da relação[13].
Na analogia as semelhanças não se
constituem mais como signos visíveis, tal como nas duas primeiras similitudes;
trata-se, agora, de uma sutileza maior nas relações entre as semelhanças,
configurando “a partir de um mesmo ponto, um número indefinido de parentescos”[14].
Por conseguinte, a analogia tem uma
imensa força nas relações de similitude, com a característica de dobrar-se
sobre si mesma, em uma relação que marca silenciosa e ocultamente a sua não
contestação.
Podemos fixar
o exemplo de Foucault, a respeito deste grande poder da analogia sobre as
relações de semelhança, à luz do pensamento de Césalpin:
A
velha analogia da planta com o animal (...), Césalpin não a critica nem a põe
de parte; reforça-a, ao contrário, multiplica-a por ela própria, quando
descobre que a planta é um animal de pé, cujos princípios nutritivos sobem de
baixo para cima, ao longo de uma haste que se estende como um corpo e se
completa por uma cabeça – ramalhete, flores, folhas: relação inversa mas não
contraditória com a analogia primeira (...)[15].
Ademais, essa
analogia primeira dispõe os animais na relação de parentesco com as plantas,
segundo Césalpin, em que “a rede venosa”, desses mesmos animais, “começa também
na parte inferior do ventre e a veia principal sobe para o coração e a cabeça”[16].
Eis o ponto que podemos realçar acerca deste tipo de similitude: a conexão, ou
semelhança, entre as coisas é um análogo per
si numa relação de forças, cujo número de semelhanças é indeterminável, e o
seu inverso visa sobre si mesmo incontestavelmente.
Contudo, esse
ponto primordial, ou melhor, privilegiado da analogia, garante sua aplicação universal ao saber do mundo
renascentista. Tudo converge ao reverso, no sentido polivalente das figuras do
saber pelas quais, por aproximação, as relações não se alteram apenas se
invertem. Eis, aqui, que emerge, pela primeira vez, a figura do homem como
ponto principal da analogia. Não se trata,
pois, do homem do século XIX – pelo qual estudaremos nas páginas posteriores –,
mas, sim, do homem do século XVI que, por estar relativamente proporcional aos
animais, às plantas, à terra, aos metais, às tempestades, ao Universo etc.[17],
forma o espaço central das analogias. O homem está circundado por analogias,
mas, ao mesmo tempo, há uma inversão de seu papel com as semelhanças que ele
mesmo obtém do mundo; há, portanto, a transmissão das similitudes
analogicamente refletidas, na relação inalterável deste grande sustentáculo das
figuras do saber – que é o homem – com as coisas que, a partir dele, são outra
vez representadas e irradiadas pelo mundo.
1.5 Simpatia e
antipatia
A quarta e
última forma de similitude é representada pelo “jogo das simpatias”[18].
Diferentemente das três semelhanças anteriores, a simpatia não é previamente
determinada, nela não existe um distanciamento, não há uma irradiação de suas
partes pelo mundo. Ela liga e dá movimento às coisas, promove aproximações com
uma força que tem o inconveniente poder de assimilação, ou seja, por ela todas
as coisas transformam-se, ficam misturadas e tornam-se idênticas eliminando as
individualidades.
No entanto,
para que a simpatia não reduza tudo à figura do Mesmo, de forma idêntica, ela é contrabalanceada pelo seu par, a antipatia. Esta força oposta garante as
individualidades e vai de encontro ao poder de assimilar da simpatia. Essa oposição vai além de um simples embate
entre ambas, aqui, há um “ódio”, e não uma inversão passiva. O movimento se dá
pela ligação e pela dispersão promovidas, respectivamente, pela simpatia e
antipatia. Trata-se, portanto, de um combate feroz dentro desse mesmo par, a
fim de que todas as coisas permaneçam o que são:
A
identidade das coisas, o fato de que possam assemelhar-se a outras e
aproximar-se delas, sem contudo se dissiparem, preservando sua singularidade, é
o contrabalançar constante da simpatia e da antipatia que o garante[19].
Assim, como
podemos ver essa dupla característica da quarta forma de similitude – concomitantemente
“simpática” e “antipática” – tem autoridade máxima sobre as três similitudes
anteriores. A convenientia com seus
círculos vizinhos, a aemulatio com
sua distância refletida identicamente em si mesma e as superposições da analogia se encontram mantidas e
duplicadas nas relações da simpatia-antipatia,
pelas quais as coisas passam a assemelharem-se tanto por aproximação, quanto
por distanciamento. Enfim, este é o jogo das similitudes que são “comandadas”
pela simpatia e antipatia que efetiva as semelhanças, pelas quais, por essa
perspectiva, as coisas sempre se assemelham; o mundo é mantido idêntico. “O
mesmo persiste o mesmo, trancafiado sobre si”[20].
1.6 A linguagem
em um sistema ternário dos signos
Afinal, após
analisarmos a cada uma das quatro similitudes podemos configurar, agora, o
campo epistêmico do século XVI. Para este intento, é mister estarmos cônscios
da importância das assinalações como
marca indelével das semelhanças. Não há relação se, a partir das palavras, o
terreno das assinalações não estiver presente entre as similitudes que
comportam as coisas. Não há semelhança entre uma ou outra coisa se, em termos
de decifração, uma palavra não dizer respeito ao que se pode conhecer do mundo.
Eis, então, a grande roda do saber renascentista: as similitudes só se efetivam
a partir do discurso que, pela simpatia
e analogia, traduz a visibilidade na
invisibilidade do mundo obscuro – as assinalações “resolvem” o enigma das
coisas desde que sejam decifradas pelas palavras.
O conhecimento
do século XVI se dá pela assimilação das semelhanças. É esse o ponto pelo qual
Foucault começa a destacar que, de modo geral, o saber não se dá na diferença,
mas na representação como repetição[21]
de um mundo similar. Por esta razão, convém apontar o papel das similitudes na epistémê da Renascença:
Convenientia, aemulatio, analogia e simpatia nos
dizem de que modo o mundo deve se dobrar sobre si mesmo, se duplicar, se
refletir ou se encadear para que as coisas possam assemelhar-se. Dizem-nos os
caminhos da similitude e por onde eles passam; não onde ela está nem como a
vemos, nem com que marca a reconhecemos[22].
Essa marca
pode ser a linguagem que, conforme as semelhanças são efetivadas pelas
assinalações, dá ao mundo o seu estigma
na decifração do Mesmo, ou seja, o
discurso não se dá em um plano linear; há aqui, essencialmente, uma imbricação
e uma ondulação na continuidade do saber da linguagem. As semelhanças são validadas
por outra semelhança e, nesse
sentido, a linguagem é designada conforme o que se segue:
O
sistema das assinalações inverte a relação do visível com o invisível. A
semelhança era a forma invisível daquilo que, do fundo do mundo, tornava as
coisas visíveis; mas para que essa forma, por sua vez, venha até a luz, é
necessária uma figura visível que a tire de uma profunda invisibilidade. Eis
porque a face do mundo é coberta de brasões, de caracteres, de cifras, de
palavras obscuras[23].
Todavia, os
reflexos do mundo são garantidos pelas palavras que, na linguagem do século
XVI, assinala a duplicação do Mesmo
em uma repetição das coisas que os sustentam. A simpatia-antipatia cerca todas as outras semelhanças em um círculo único, no qual o mundo é
comparável à fala dos homens que, a partir das palavras, encerra esse ciclo das
similitudes enfim assinaladas. E é assim que se dá o ponto de apoio desta epistémê, em que o mundo torna-se o
reino dos signos aos quais indicam o que deve, ou não, ser conhecido no decurso
de sua significação; esse é, portanto o local onde se forma tal ambiente
enigmático.
Como vimos, a
simpatia é atrelada à analogia por comparar elementos a princípio diversos[24].
Entretanto, também há imbricação entre a emulação que pode ser reconhecida na
analogia. Eis um exemplo dessa relação:
(...)
os olhos são estrelas porque espalham a luz sobre os rostos como os astros na
obscuridade, e porque os cegos são no mundo como os que têm clarividência no
mais soturno da noite[25].
Além de
podermos reconhecer a emulação na analogia, ainda podemos reconhecê-la também
na conveniência, assim como sugere o exemplo a seguir:
(...)
sabe-se, desde os gregos, que os animais fortes e corajosos têm a extremidade
dos membros larga e bem desenvolvida como se seu vigor tivesse sido comunicado
às partes mais distantes do seu corpo[26].
Todas as
coisas são convenientes entre si, conforme há uma distância entre os seres logo
que, em seguida, são aproximados por simpatia. Eis o elo que confirma o
fechamento das relações de similitude: tudo é entendido como um ciclo, na proporção em que haja uma
comparação, primeiramente invisível, de uma semelhança com outra semelhança que, posteriormente visível, é configurada pela assinalação que a reconhece. Porém,
ainda é importante afirmarmos que a duplicação dos círculos das similitudes não
acontece de forma plana, pois, há sempre um desnível na marca assinalada do
signo, ao qual fica garantido o jogo das simpatias
que, por sua vez, se dá na analogia
entre as coisas às quais a aemulatio
reflete essas mesmas coisas por convenientia
entre o par simpatia-antipatia.
A partir dessa
sequência, podemos verificar que há sempre um vão, um hiato entre todas as
semelhanças na dimensão do conhecimento. Da marca à palavra, façamos presente
um trecho característico a respeito do que podemos delimitar acerca do saber da
linguagem renascentista:
Chamemos
hermenêutica ao conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem fazer
falar os signos e descobrir seu sentido; chamemos semiologia ao conjunto de
conhecimentos e de técnicas que permitem distinguir onde estão os signos,
definir o que os institui como signos, conhecer seus liames e as leis de seu
encadeamento: o século XVI superpôs semiologia e hermenêutica na forma de
similitude[27].
No entanto,
vinculada a essa mesma linguagem, assim significada, na medida em que esta se
assemelha ao que se indica, está presente a questão da “noção de mundo” na
Renascença. Esse “mundo” na epistémê
do século XVI é cheio de signos e insígnias, aos quais são compostos por
enigmas que devem ser decifrados. Todo “conhecimento
científico” é “composto pela erudição e também por uma boa
dose de magia”[28].
Há, aqui, um mistério pelo qual é preciso “decifrar
a linguagem, enquanto signo das coisas”[29].
Por conseguinte, Foucault fala de duas características da linguagem:
Divinatio e Eruditio são uma mesma hermenêutica. Ela
se desenvolve, porém, segundo figuras semelhantes, em dois níveis diferentes:
uma vai da marca muda à própria coisa (e faz falar a natureza); a outra vai do
grafismo imóvel à clara palavra (restitui vida às linguagens adormecidas)[30].
Dessa forma,
vimos que as duas características da linguagem – divina e erudita – caminham
rumo a um mesmo “objetivo” duplamente constituído: há um primeiro movimento que
é “o signo enquanto elemento a ser
decifrado”[31]; e,
concomitantemente, há um segundo movimento que é “o signo a ser recolhido”[32].
E, por conseguinte, tanto a divindade do signo, quanto a erudição da palavra,
seja ao fazer a natureza falar, ou então ao dar vida “às linguagens
adormecidas” – que é “objetivamente” essencial a todo conhecimento do século
XVI –, trata-se, na realidade, de saber ler (conhecer) a verdade considerada
literalmente eterna.
Por essa
razão, a linguagem é fechada em si mesma, fragmentada, misteriosa e enigmática.
A partir dela, as figuras do mundo estão todas imbricadas e misturadas, a ponto
de se apresentarem como signos que desempenham o papel de decifrar a verdade
eterna aos homens que, por seu turno, veem nessa condição o seu aspecto
indicativo. As similitudes e as assinalações são relacionadas diretamente com a
linguagem, formando, assim, uma tríade que é garantida pela escrita das
palavras nas coisas do mundo. Tal escrita advém sob a forma de comentário na
qual, pela interpretação das marcas visíveis de um texto primeiro, aparece como característica essencial ao século
XVI. Há quem diga que a escrita vem antes da fala[33],
e não somente pela ordem de aparecimento, mas antes, em consequência disso, há
o sentido da primeira ter prioridade em relação à segunda. Dizem que a fala é
como se fosse uma parte fêmea e passiva da linguagem; já a escrita aparece como
sua característica motora, ou o seu “princípio macho”, sendo, por isso, um
agente da linguagem. E, portanto, é somente a partir da escrita que a verdade
eterna do mundo sobre os homens pode, pois, ser desvelada.
Após este
longo percurso acerca dos círculos assinalados das similitudes, da “noção de
mundo” renascentista e da primazia da escrita podemos, agora, abordar com maior
precisão àquilo que o título da presente seção sugere: que diz respeito ao sistema ternário dos signos dados a partir
de um ser único da linguagem. Aqui, as três unidades se dão pela formação
entre o significante, o significado e a conjuntura[34]; elas
estão diretamente representadas pelas marcas que formalmente designam,
assinalam e assemelham os signos que, em vista disso, caracterizam-se como o conteúdo
primordial desse mesmo sistema de três partes, ao qual se apresenta como uma
figura única. Eis um excerto que
exemplifica precisamente essa mesma noção ternária dos signos, que reaparece
invertida na experiência da linguagem do século XVI:
(...)
esta existe primeiramente, em seu ser bruto e primitivo, sob a forma simples,
material, de uma escrita, de um estigma sobre as coisas, de uma marca espalhada
pelo mundo e que faz parte de suas mais indeléveis figuras. Num sentido essa
camada da linguagem é única e absoluta[35].
Por fim, ainda
se fazem presentes outras duas formas do discurso renascentista, ao lado da
supracitada distinção inversa da linguagem: em primeiro lugar, “o comentário,
que retoma os signos dados com um novo propósito”; e, em segundo lugar, “o
texto, cujo comentário supõe a primazia oculta por sob as marcas visíveis a
todos”[36].
Assim a linguagem se caracteriza sob esses três aspectos, mas, com um único ser
dado pela escrita. Não obstante, no final da Renascença, acontecer-se-á o
desaparecimento desse sistema ternário das significações. A partir do século
XVII, não mais existirá a tríade entre o significante, significado e
conjuntura, mas sim, estará presente, a partir da lógica e, principalmente, da gramática de Port-Royal, uma disposição
binária, que liga um significante com
um significado. A pergunta renascentista sobre a forma como poderia se
reconhecer um signo que designa literalmente o que ele significa, é
substituída, no classicismo, pela questão de como um signo pode ter ligação direta
com aquilo que ele significa.
Finalmente, as palavras separar-se-ão das coisas.
[1] Este capítulo versa sobre o
predomínio da similitude (similitudo)
relativamente à sua conexão infinita da linguagem (écriture) com a realidade das coisas no mundo renascentista. Não
obstante, a respeito desse mesmo capítulo, Foucault recebera uma carta contestadora
do pintor surrealista belga René Magritte, datada de 23 de maio de 1966, com o
argumento de que não há semelhanças nas relações entre as coisas, mas
tão-somente existem similitudes: “As palavras Semelhança e Similitude permitem
ao senhor sugerir com força a presença – absolutamente estranha – do mundo e de
nós. Entretanto, creio que essas duas palavras não são muito diferenciadas, os
dicionários não são muito edificantes no que as distingue. Parece-me que, por
exemplo, as ervilhas possuem relação de similitude entre si, ao mesmo tempo
visível (sua cor, forma, dimensão) e invisível (sua natureza, sabor, peso). O
mesmo se dá no que concerne ao falso e ao autêntico etc. As ‘coisas’ não
possuem entre si semelhanças, elas têm ou não têm similitudes. Só ao pensamento
é dado ser semelhante. Ele se assemelha sendo o que vê, ouve ou conhece, ele
torna-se o que o mundo lhe oferece.”. Cf. FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Tradução Jorge
Coli, 3ª edição, São Paulo, Paz e Terra, 2002, pp. 81-2.
[2] Cf. Ver a seção V “L’etre du langage” do capítulo II “La prose du monde”. In: FOUCAULT,
Michel. Les mots et les choses. Paris. Gallimard,
1966, pp. 41-3. Tradução
brasileira:_________. As palavras e as
coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus
Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, pp. 58-61.
[3] Esta distinção de “lugar” é muito
mais um conjunto de signos aproximados do que uma similitude plena, ou seja, a
vizinhança entre as figuras do saber não se constitui como a principal
característica das similitudes. Ainda que seja a primeira forma com o qual era
possível conhecer a partir da proximidade entre os objetos, a convenientia, por ajustamento em um
lugar comum, não representa com toda força a parte essencial das semelhanças.
Configura-se apenas como o primeiro complemento das outras três similitudes.
Ibid., p. 22 / Ibid., p. 24.
[5] Foucault indica que esse “espaço” na
relação entre as coisas se dá por uma “aproximação gradativa”. Ibid.,
p. 23 / Ibid., p. 25.
[6]
Ibid., p. 23 / Ibid., p. 26.
[7] Ver também a descrição de Aldrovandi
no seu Monstrorum historia: “De longe,
o rosto é o êmulo do céu e, assim como o intelecto do homem reflete, imperfeitamente,
a sabedoria de Deus, assim os dois olhos, com sua claridade limitada, refletem
a grande iluminação que, no céu, expandem o Sol e a Lua; a boca é Vênus, pois
que por ela passam os beijos e as palavras de amor; o nariz dá a minúscula
imagem do cetro de Júpiter e do caduceu de Mercúrio”. Ibid., pp. 23-4 / Ibid.,
pp. 26-7.
[8] Ibid., p 24 / Ibid., p. 27.
[9] Ibid., p. 24 / Ibid., p. 27.
[11] Cabe salientar a distinção do
conceito grego de analogia, na qual se trata de “uma igualdade de relações que
supõe, pelo menos, quatro termos”: a/b = c/d. Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. V, 3, 1131a, pp. 30-1
/ Cf. _________. Metafísica. V, 6,
1016b, pp. 30-5. Ver também o conceito tomista acerca da equidade que, em
grande medida, tem forte influência advinda do conceito aristotélico de ἀναλογία. Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma teológica. Tradução Alexandre
Corrêa, 2ª edição, Caxias do Sul, Sulina, 1980.
[12] Ver a nota 21 do presente estudo.
[13] “Os elos da emulação não formam uma
cadeia como os elementos da conveniência: mas, antes, círculos concêntricos,
refletidos e rivais”. FOUCAULT, Michel. Les
mots et les choses. Paris. Gallimard, 1966, p. 25. Tradução brasileira:_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das
ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo,
Martins Fontes, 2007, p. 29.
[17]
Cf. Crollius. Traité des signatures, pp. 87-88 / P. Bellon. Histoire de la nature des oiseaux. Paris,
1555, p. 37 / Aldrovandi. Monstrorum
historia, p. 4.
[18] Cf. FOUCAULT, Michel. Les mots
et les choses. Paris. Gallimard, 1966, p. 26. Tradução brasileira:_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das
ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo,
Martins Fontes, 2007, p. 32.
[19] Ibid., pp. 27-8 / Ibid., p. 34.
[21] Cf. Ver as várias distinções sobre o
conceito “repetição” na representação. In: DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz
Orlandi e Roberto Machado, São Paulo, Graal, 2009.
[22]
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses.
Paris. Gallimard, 1966,
p. 28. Tradução brasileira:_________. As
palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma
Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 35.
[23]
Ibid., p 29 / Ibid., pp. 36-7.
[24] Cf. Ver os exemplos de Crollius a
respeito da existência da “simpatia entre o acônito e os olhos”, e a “afinidade
entre a noz e a cabeça”, como formas para curar doenças – por exemplo, a dor de
cabeça – a partir das similitudes entre tais elementos. In: Ibid., p. 30 /
Ibid., p. 37-8.
[25]
Ibid., p. 30 / Ibid., p. 38.
[27] Ibid., p. 31 / Ibid., p. 40.
[28] Cf. AMADO, Wolmir. A Linguagem em Foucault, segundo “As
Palavras e as Coisas”. Estudos. Goiânia: Editora PUC-GO, v. 21, n. 3/4,
jul/dez, 1994, p. 6. Grifo nosso.
[29] Cf. Ibid., p. 6. Grifo nosso.
[30]
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses.
Paris. Gallimard,
1966, p. 35. Tradução brasileira:_________. As
palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma
Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 46.
[31] Cf. AMADO, Wolmir. A Linguagem em Foucault, segundo “As
Palavras e as Coisas”. Estudos. Goiânia: Editora PUC-GO, v. 21, n. 3/4,
jul/dez, 1994, p. 6. Grifo nosso.
[32] Cf. Ibid., p. 6. Grifo nosso.
[33] Cf. Blaise de Vigenère. Traité dês chiffres. Paris, 1587, pp.
1-2 / Claude de Duret. Trésor de
l’histoire dês langues, pp. 19-20.
[34] Cf. No estoicismo a similitude era
indicada pelo conceito grego de τύγxανον, no sentido de
relacionar um acontecimento (acaso), uma coincidência, enfim, uma conjuntura na
ligação entre o significado e o seu significante. In:
FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses.
Paris. Gallimard,
1966, p. 41. Tradução brasileira:_________. As
palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma
Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 58. / Ver também
o estudo de Pierre Hadot acerca da grande influência que Foucault teve do
pensamento estóico, principalmente ao que doravante chamara de “cuidado de si”.
In: HADOT, Pierre. Exercices spirituels
et philosophie antique. Paris. Etudes Augustiniennes, 1981. Versão
em inglês: _________. Philosophy as a Way
of Life: spiritual exercises from Socrates to Foucault. Edição Arnold
Davidson. Tradução Michael Chase. Oxford, Blackwell, 1995.
[35]
Ibid., p. 42 / Ibid., p. 58.
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