quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O cu da máquina


Bom dia,

Apresento-lhes as primeiras linhas de um maravilhoso texto de Gilles Deleuze e Félix Guattari[1], em que a velha metáfora que diz que somos “Máquinas” é substituída, no âmbito do desejo, por uma condição de sermos estritamente máquinas, sem metáfora alguma. A indicação da página do texto original aparecerá em colchetes [parênteses reto], bem como as notas do tradutor [NT] estarão igualmente indicadas da mesma forma. Na sequência, logo após o texto traduzido para o português, colocarei o texto original em francês para aqueles que têm proficiência na língua, e preferem ler o texto com suas palavras e períodos advindos direto de sua origem primeira. Desejo que gozem das sábias palavras a seguir:


Capítulo I

AS MÁQUINAS DESEJANTES

[7]


[I.1. A PRODUÇÃO DESEJANTE]

Isso funciona em toda parte: às vezes sem parar, outras vezes descontinuamente. Isso respira, isso aquece, isso come. Isso caga, isso fode. Mas que erro ter dito o isso. Há tão somente máquinas em toda parte, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com seus acoplamentos, suas conexões. Uma máquina-órgão é conectada a uma máquina-fonte: esta emite um fluxo que a outra corta. O seio é uma máquina que produz leite, e a boca, uma máquina acoplada a ela. A boca do anoréxico hesita entre uma máquina de comer, uma máquina anal, uma máquina de falar, uma máquina de respirar (crise de asma). É assim que todos somos “bricoleurs”;[2] cada um com as suas pequenas máquinas. Uma máquina-orgão para uma máquina-energia, sempre fluxos e cortes. O presidente Schreber[3] tem os raios do céu no cu. Ânus solar. E estejam certos de que isso funciona. O presidente Schreber sente algo, produz algo, e é capaz de fazer a teoria disso. Algo se produz: efeitos de máquina e não metáforas. [...]




[4]

chapitre 1

les machines désirantes


Ça fonctionne partout, tantôt sans arrêt, tantôt discontinu. Ça respire, ça chauffe, ça mange. Ça chie, ça baise. Quelle erreur d'avoir dit le ça. Partout ce sont des machines, pas du tout métaphoriquement: des machines de machines, avec leurs couplages, leurs connexions. Une machine-organe est branchée sur une machine-source : l'une émet un flux, que l'autre coupe. Le sein est une machine qui produit du lait, et la bouche, une machine couplée sur celle-là. La bouche de l'anorexique hésite entre une machine à manger, une machine anale, une machine à parler, une machine à respirer (crise d'asthme). C'est ainsi qu'on est tous bricoleurs; chacun ses petites machines. Une machine-organe pour une machine-énergie, toujours des flux et des coupures. Le président Schreber a les rayons du ciel dans le cul. Anus solaire. Et soyez sûrs que ça marche; le président Schreber sent quelque chose, produit quelque chose, et peut en faire la théorie. Quelque chose se produit: des effets de machine, et non des métaphores. […][5]



[1] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia 1. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010, p. 11.

[2] NT [“Todos somos bricoleurs”, não apenas no sentido de podermos desviar múltiplas coisas deste ou daquele conjunto funcional para vários outros, mas também porque nossas próprias máquinas se engrenam multiplamente.]

[3] NT [Daniel Paul Schreber (1842-1911), autor de Denkwürdigkeiten eines Nevenkranken (1903); edição brasileira: Memórias de um doente dos nervos, tradução de Marilene Carone, São Paulo, Paz e Terra, 1995.]

[4] Richard Lindner, Boy with Machine (1954, ole, 40 x 30, Mr and Mrs C. L. Harrisson, Batavia, Ohio).

[5] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. L’Anti Œdipe: Capitalisme et schizophrénie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1972/1973, p. 7.

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