Uma crítica à dialética hegeliana
EDUARDO DE ARAÚJO BENTO
Nossa breve reflexão visa apresentar as principais contraposições entre o método analético proposto pelo filósofo argentino Enrique Dussel com a chamada dialética hegeliana do século XIX. Este trabalho será feito a partir da leitura do texto “Método para uma filosofia da liberação”, mais precisamente no item do parágrafo 26 intitulado “O método dialético positivo. O momento analético”. Apesar de o texto apresentar as perspectivas de Dussel a respeito de tantos outros pensadores europeus, além de Hegel, nossa principal atenção será dada somente à crítica dusseliana relativamente ao conceito da dialética totalizante, ou aquilo a que ele chama, à luz de Feuerbach, de falsa dialética. Seus desdobramentos em outras correntes filosóficas, ou outros conceitos de diversos pensadores, não serão abordados no presente estudo, pois, o que interessa-nos aqui é somente explicitar o que é a dita analética proposta por Dussel.
Para se efetivar um método dialético positivo, ou seja, um momento analético, nós devemos, em primeira instância, considerar o outro não como um mero absoluto-de-si, interdependente na relação com o mesmo-absoluto-de-si, pois, estaríamos falando de uma totalidade que não somos nós. Aqui e sempre, não fazemos parte das considerações filosóficas de uma dialética falsamente distante do nosso verdadeiro lugar. Este método está para além de toda dia-lética européia que gira em torno de si-mesma, como se fosse um pequeno universo, dentre tantos outros possíveis, onde minúsculas constelações (os outros) são apenas subservientes e ficam ao redor de uma “grande” galáxia carente de realização para se efetivar (o Mesmo).
Nós somos a América Latina, o verdadeiro outro relativamente à totalidade européia. Somos o povo pobre e oprimido: o índio, o africano, o asiático. É sobre este espaço, sobre esta população que emerge a ana-lética. Muito embora ainda haja a trans-valoração do movimento-de-si acima “do outro enquanto livre, como um além do sistema da totalidade”[1]. Esta trans-valoração é um movimento meramente expansionista de dominação e efetivação ideológica desta dialética considerada falsa; é um ente-consigo-mesmo (outro-de-si), em seu ser (o Mesmo) fechado e inautenticamente aceito como único.
Contudo, a analética é antropológica. Ela não considera somente uma analogia do “rosto sensível do outro”[2]. Não é simplesmente como outro-sensível-em-si, mas, muito além de considerar-se uma unidade totalizante, ela admite uma criação e um trabalho. Em termos relativos do outro ser, sempre há um vis-à-vis, ou seja, um estar defronte com o outro rosto e, sendo assim, este rosto do outro “é o dizer em pessoa, é o gesto significante essencial, é o conteúdo de toda significação possível em ato”[3]. Este atributo antropológico da analética é também, como afirma Dussel, uma significação econômica, política e erótica. O outro é uma revelação, um semelhante (aná-), um pensamento que parte de sua palavra e admite seus gestos. Não é pura e simplesmente uma subsunção e uma suprassunção aos termos de Hegel; é a própria libertação de um movimento meramente dominador. É a superação dos ditames europeus acerca do que deveria ser a filosofia, ou seja, é toda uma crítica ao modelo dia-lético proposto desde a chamada Modernidade.
O momento ana-lético é aquele que irrompe com a totalidade ontológica, ao qual, Dussel, indica quais são os passos do movimento do método:
Em primeiro lugar, o discurso filosófico parte da cotidianidade ôntica e dirige-se dia-lética e ontologicamente para o fundamento. Em segundo lugar, de-monstra cientificamente (epistemática, apo-diticamente) os entes como possibilidades existenciais. É a filosofia como ciência, relação fundante do ontológico sobre o ôntico. Em terceiro lugar, entre os entes há um que é irredutível a uma de-dução ou de-monstração a partir do fundamento: o “rosto” ôntico do outro que, em sua visibilidade, permanece presente como trans-ontológico, meta-físico, ético.[4]
Assim, a analética, pelo rompimento com a tradição da dialética hegeliana, supera a noção totalizante do Mesmo-de-si e do outro-de-si, em direção ao “rosto” do outro como outro, existente em mais de um sujeito: este momento é revelado em um quarto movimento no
Discurso negativo a partir da totalidade, porque pensa a impossibilidade de pensar o outro positivamente partindo da própria totalidade; discurso positivo da totalidade, quando pensa a possibilidade de interpretar a revelação do outro a partir do outro (...) porque a negatividade primeira do outro questionou o nível ontológico que, agora é criado, com base num novo âmbito. O discurso se faz ético e o nível fundamental ontológico descobre-se como não originário, como aberto a partir do ético (...)[5]
E ainda há uma quinta fração deste movimento, ligado ao momento ético que vai além das possibilidades ontológicas, em que
O próprio nível ôntico das possibilidades fica julgado e relançado a partir de um fundamento eticamente estabelecido, e estas possibilidades como práxis analética transpassam a ordem ontológica e se adiantam como “serviço” na justiça.[6]
Se nós falamos sobre uma dia-lética falsa – aquela que é meramente teórica, um simples “discurso ôntico das ciências ou ontológico da dialética”[7] - em contraposição ao método dialético positivo que, segundo Dussel, aceita ao outro como sendo outro, trata-se então de uma escolha ética, ou seja, um comprometimento moral. Este método dialético positivo, enquanto moral, é a ana-lética: é o “negar-se como totalidade, afirmar-se como finito, ser ateu do fundamento como identidade”[8].
Por fim, reafirmamos que o momento ana-lético não é o de negação do outro, tal como é o movimento dia-lético. E cabe ainda salientar que o vis-à-vis do verdadeiro filósofo latino-americano é aquele que não está comprometido com a ontologia, é o deixar-se ser outro: superar e libertar-se das amarras de uma dia-lética que simplesmente nega-se ao outro-de-si, embora não negue uma necessidade epistemológica. Esta falsa dia-lética não assume o momento aná-logo libertador, é meramente a negação da negação, é a forma de uma síntese entre as partes afirmativa e negativa que, grosso modo, “diz” movimentar-se em si mesma, mas que não é mais que um “aprisionamento” na afirmação de uma totalidade inexistente – enclausuramento que não deveria existir – em nossa vivência. A ana-lética, além de considerar o semelhante, é uma voz exterior que vem de cima (aná-); é a afirmação da exterioridade do outro. Portanto, é o grito dos oprimidos que somos todos nós, o povo não-europeu, a população latino-americana, índia, africana e asiática.
Muito bem escrito e fácil de entender. Parabéns!
ResponderExcluirMuito obrigado pelo seu comentário, Nessa. Fiquei feliz!
ResponderExcluirBeijos,
E.B.
Ficou muito bom! Parabéns!
ResponderExcluirObrigado pela força, Jo! ^^
ResponderExcluirBeijos,
E.B.
Parabéns, artigo muito bem escrito.
ResponderExcluirAh, muito obrigado, Sara. Sinto-me honrado...
ResponderExcluirBeijos,
E.B.
Acho interessante, muito interessante à crítica a Dialética hegeliana feita por Dussel e... mas, fracamente, está crítica não deveria ser àqueles que a interpretaram assim ou assado, isto é, politicamente? (não creio que Hegel esteja pensando na America latina quando escreveu o que escreveu, América Latina é acidental). Esta interpretação para mim é uma furada, caro Eduardo - é briga de ideologias?
ResponderExcluirOutra coisa, ainda há esta separação estática entre o velho e o novo mundo (colonizado)? Parece, de fato, que tudo se tornou "uno". Eu diria que o pensamento filosófico-teológico da libertação não é dialético, é em si...
Depois envia o texto completo para que eu o leia.
Abs
Grato pelo teu comentário, Gentil.
ResponderExcluirEste já é o texto na íntegra...
E.B.
Bom, eu não posso fazer uma crítica a respeito do que não tenho conhecimento, mas posso lhe dizer que entendi o pensamento que vc quis passar e me interessei pelo assunto. Vou procurar saber mais para que eu possa fazer um comentário decente. =D
ResponderExcluirAté então, eu gostei muito. Bem explicado escrito, como a Nessa disse.
Oi, Lilian. Tudo bem?
ResponderExcluirMuito obrigado por ler tudo e comentar. Fico contente por ter dispartado em você o interesse em conhecer mais sobre o assunto. Eu não sou especialista em Dussel - aliás, sou especialista de nada; sou apenas um estudante de filosofia -, porém, se quiser, posso indicar um ex professor meu que sabe bastante de Dussel, talvez ele te dê indicações até melhores que as minhas para conhecer melhor este filósofo.
Mais uma vez agradeço por ter lido e comentado. Também agradeço por conseguir me fazer ficar feliz pelo fato de ter acontecido um interesse de sua parte...
Beijos,
E.B.