quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Las meninas

"Livre da relação, a representação pode se dar como pura apresentação" (Michel Foucault)

Diego Velásquez
Prosa

JULIANO GARCIA PESSANHA

Continuei naquele quarto escuro, continuei dando cordas num relógio desnecessário e preparando minhas roupas em posição geométrica, como já disse, sobre uma mesa de bilhar. A propósito, ganhei essa mesa de bilhar do segundo marido de minha mãe. Eu andava virando os olhos para trás de tal modo que eles (pessoas) viam só o branco do olho; eu fazia isso, eu fazia esse movimento o tempo todo, tanto no lugar-casa quanto no lugar-escola, quanto no lugar-ônibus, que me levava de um lugar idêntico a outro ainda mais idêntico. Eu virava os olhos para dentro: não sei se era para procurar a criança sumida, a criança que tinha visto Eloá, se era para verificar o terreno baldio dentro da marionete-ordem ou se era simplesmente para não ver a onipresença das coisas, o fato é que eu revirava os olhos. Então o Paulo me disse: "Se você parar com isso eu te dou uma mesa de sinuca, Garoto". E então eu parei de fazer aquilo na frente da figura-Paulo e da figura-mãe, eu parei de fazer aquilo no lugar-casa e no lugar-colégio, e eu passei a fazê-lo apenas sozinho, no lugar-quarto e no lugar-banheiro. Eu revirei os olhos sem parar, madrugadas inteiras, madrugadas inteiras eu fiquei zanzando do horror de fora ao vazio de dentro e do vazio de dentro ao horror de fora. E neste jogo eu nunca achei nada diferente, eu encontrei sempre de um lado o absurdo ininterrupto e do outro escuridão. Ganhei, entretanto, uma bela mesa de bilhar. Eu pude andar em torno dela e pude aprender sinucas de bico. Nela eu derrotei sucessivos mordomos. O ter parado de espiar pra dentro para ganhar uma mesa foi uma das raras vezes em minha vida em que negociei, em que executei, deliberadamente, uma ação racional instrumental tendo em vista fins. Muitos anos depois, nos anos 95, 96 e 97, quando tudo, absolutamente tudo esteve em jogo, nesses anos que foram os mais perigosos e terríveis da minha vida e que a minha assim chamada integridade física esteve duramente ameaçada, e isso inúmeras vezes, então, nesses anos, eu não consegui negociar absolutamente nada. E quando eu ouvi a voz-família dizer: "Gombro, se você não parar de beber, se você não parar de correr atrás da vodka, você vai para o hospício ou para a polícia", então eu não parei de beber e eu conheci o lugar-sanatório, o lugar-manicômio e o lugar-presídio. E não há a menor dúvida que eu terei de dizer tudo, eu terei de contar absolutamente tudo, o alfa e o ômega, tudo tal como foi e tal como se passou, pois isto já não é mais uma questão minha e já é uma necessidade maior do que de comer ou respirar. Engana-se quem diz que o horror é inominável, o horror só é inominável para quem só conhece palavras dóceis, para quem só conhece as palavras meios-termos, mas o horror é dizível na hipótese em que você foi visto por um olho-Auschwitz e você, tendo percebido que estava sendo visto-e-dito por um olho-boca-Auschwitz, você, simultaneamente, assistiu tudo isso acontecer.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A relação entre linguagem comum e consciência.

EDUARDO DE ARAÚJO BENTO

As linhas que se seguem dessa breve explicação sobre a relação entre linguagem habitual - por vezes considerada como uma linguagem soez, principalmente aos ditames considerados como plenamente eruditos -, e a consciência humana nos limites filosóficos de tradição platônica, ou até mesmo positivista, tentam por analisar a conexão que Merleau-Ponty explicitou em seu texto A prosa do mundo no capítulo sobre A ciência e a experiência da expressão. Ser-se-ão relatadas aqui, no presente texto, as partes provenientes dos parágrafos cinco e oito do referido capítulo.

Ao entender a linguagem habitual ou comum como proveniente das relações cotidianas, Merleau-Ponty não faz nenhum hiato, ou melhor, não considera existente uma separação entre os conceitos e as significações da linguagem científica. É um tanto até evidente a sua verificação de uma possível ligação entre os dois tipos de linguagem, se é que há essa dualidade das expressões corriqueiras da fala e dos conceitos amplamente considerados fechados, sobre um conhecimento sistematizado com vistas à observação ou à simples reflexão dos fatos. Por essa razão, a ciência, pelo olhar merleau-pontyano, assim como a filosofia, não deveriam fechar-se à linguagem comum, por esta não se tratar de um simples distanciamento da razão e do conhecimento perante as grandes intuições do homem. A linguagem passa a ser considerada como um importante elo entre as expressões introspectivas e a comunicação entre os seres humanos.

A linguagem é a construção dos fatos que a ciência ou a filosofia deveriam buscar para obter suas respostas e suas conclusões. Entre um e outro saber não deveria existir um caráter fechado ante as significações de uma linguagem que, antes de tudo, deve vir em primeiro lugar com relação aos procedimentos e conceitos. Pelas quais, nenhuma das chamadas “disciplinas” poderiam constituir-se sem antes contar com toda uma série de intenções, verificações, atribuições, premissas em geral e conclusões que, somente a partir da linguagem comum, seria amplamente possível e pautada na realidade e na vivência dos homens.

Por fim, nessa breve análise sobre a importância da linguagem para a consciência, é importante lembrar que a percepção imediata da própria experiência, depende da linguagem habitual (ou comum, como quiser) para assim ser possível. Sem a linguagem a consciência possivelmente seria vazia em si mesma, e não alcançaria uma expressão aberta para todos os seres falantes, ou seja, seria quase que como um dogma, fechada em si e que responderia somente aos fatos que inúmeras vezes não condizem com as relações que somente a linguagem atual, falada por todos, é capaz de trazer. A consciência estaria trancada em uma erudição débil ou uma simples polarização do conhecimento em seu mundo fechado e, não é dessa maneira, que a consciência deveria estar relacionada à linguagem, mas sim as duas deveriam compreender o mesmo princípio em comunicar seus atos e fatos, e não serem isoladas entre si.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Amigo é coisa pra se guardar...

Dário e Tércio: dois grandes amigos que sempre representam em tudo. Quanto mais eu os conheço, mais eu vejo como o ser humano pode ser aberto para novas afetações e novos caminhos criativos de uma vivência em união entre todos e a natureza. Não há um solipsismo, nem condições materiais para que a amizade seja sempre verdadeira e ligada ao amor em comum, pelo simples fato haver um querer bem entre os amigos sinceros. A vida torna-se um dia ensolarado em meio à multidão obscurecida que, por não-merecimento e falta de amor, jamais vão saber e entender o que é uma amizade verdadeira.


Parabéns por serem grandes amigos e seres humanos sinceros e maravilhosos como vocês são, Tércio Soares e Dário Luke...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Quando o interesse "desvia" a comunicação



Apresento-lhes o relato histórico de Judy Wallman, pesquisadora estadunidense na área de genealogia:

Durante pesquisa da árvore genealógica de sua família, Judy Wallman deu de cara com uma informação interessante e curiosa. Um tio-bisavô, Remus Reid, era ladrão de cavalos e assaltante de trens. No verso da única foto existente de Remus (em que ele aparece ao pé de uma forca) está escrito:

"Remus Reid, ladrão de cavalos, mandado para a Prisão Territorial de Montana em 1885, escapou em 1887, assaltou o trem Montana Flyer por seis vezes. Foi preso novamente, desta vez pelos agentes da Pinkerton, condenado e enforcado em 1889."

Acontece que o ladrão Remus Reid é ancestral comum de Judy e do Senador pelo Estado de Nevada, Harry Reid. Então Judy enviou um e-mail ao Senador solicitando informações sobre o parente comum. Mas não mencionou que havia descoberto que o sujeito era um bandido. A atenta assessoria do Senador respondeu desta forma:

"Remus Reid foi um famoso vaqueiro no Território de Montana. Seu império de negócios cresceu a ponto de incluir a aquisição de valiosos ativos eqüestres, além de um íntimo relacionamento com a Ferrovia de Montana. A partir de 1883 dedicou vários anos de sua vida a serviço do governo, atividade que interrompeu para reiniciar seu relacionamento com a Ferrovia. Em 1887 foi principal protagonista em uma importante investigação conduzida pela famosa Agência de Detetives Pinkerton. Em 1889, Remus faleceu durante uma importante cerimônia cívica realizada em sua homenagem, quando a plataforma sobre a qual ele estava cedeu."

É curioso analisar como o interesse político é capaz de desviar totalmente uma informação (comunicação). A interpretação do relato feito por Judy Wallman pode ser dissecada da seguinte maneira:

Texto 1 + texto 2 - Sem coesão e coerência: análise somente da intertextualidade e não da forma gramatical...

"Remus Reid, ladrão de cavalos [...] Seu império de negócios cresceu a ponto de incluir a aquisição de valiosos ativos eqüestres [...] mandado para a Prisão Territorial de Montana em 1885, escapou em 1887, assaltou o trem Montana Flyer por seis vezes [...] além de um íntimo relacionamento com a Ferrovia de Montana. A partir de 1883 dedicou vários anos de sua vida a serviço do governo, atividade que interrompeu para reiniciar seu relacionamento com a Ferrovia [...] Foi preso novamente, desta vez pelos agentes da Pinkerton [...] Em 1887 foi principal protagonista em uma importante investigação conduzida pela famosa Agência de Detetives Pinkerton [...] condenado e enforcado em 1889 [...] Remus faleceu durante uma importante cerimônia cívica realizada em sua homenagem, quando a plataforma sobre a qual ele estava cedeu."

O desvio comunicativo feito pela assessoria do Senador Reid manteve alguns pontos em comum com o texto original escrito por detrás da única foto existente de Remus. Por mais que o interesse político estivesse presente na resposta dada a Judy, o conteúdo do informativo manteve as datas, os locais e as instituições mencionadas tal como estava no texto original. Sendo assim, fica aparente a intertextualidade interpretativa entre as duas "verdades" opostas. Quando o fato parece distante, o que nos resta é a interpretação. Talvez seja apenas isto que sobra.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

É ela...


Quando a vi pela primeira vez, confesso que fiquei com certo receito. Apesar de rodeada de brasileiras, não se misturava, unindo-se somente com as estrangeiras.

Visivelmente diferente das outras, pela sua cor nada comum em nosso país, tornou-se alvo de atenção de todos nós. Particularmente, achei linda, de uma beleza exótica e inconfundível, apesar de saber que no fundo, era apenas uma loira. Muito acanhado, resolvi me aproximar, ver melhor, sabe como é, aquela necessidade que todo homem tem de ficar perto das melhores. Comuniquei-me com ela, analisei bem, barganhei um pouco é verdade, mas sabia que poderia gostar do que estava por vir. Aquele sotaque holandês me encantou de tal forma que só poderia terminar em coisa boa. Cheguei mais perto, segurei firmemente. Percebi que era tão gelada como qualquer outra européia. Encostei a boca na boca dela. Surpreendentemente, a beleza inicial, incomum aos nossos padrões visuais, escondia um amargo imenso. Durante essa experiência, fui remetido ao clima frio, depressivo e questionador dos países baixos. Porém, dessa amargura vasta, adveio um prazer infinito, que se transforma em alegria e realidade, numa clareza de idéias sem tamanho.

Atualmente não consigo viver sem ela. Busco-a sempre que possível, seja onde for, eu vou ao seu encontro. O que a torna tão especial, no final das contas, não é suas proporções distintas ou sua origem indefectível; é o extrato de todas suas características, de suas qualidades. Por tudo que nos oferece, assim me rendo a ti, elixir da verdade, HEINEKEN querida!

sábado, 13 de novembro de 2010

Triunfo

Música instrumental, ambiente e "viajante" da banda Wanted



Bons sonhos...

Os dois caminhos

Qual dos dois caminhos vós escolheis?

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Velharia


VIII
Elisão


Seguindo os meus próprios passos
Sinto a dor e vacilo ao perceber
Que tantas vidas podem padecer,
De tanto medo em unir-se em laços.

Tristeza acumulativa,
Fraqueza continuamente enfadonha;
Vejo almas perdidas, vidas transpostas à ilusão humana.
Pobreza real,
Riqueza enganosa;
Beijos caçados em prol de ficções -
Não ser aliado à convicção mundana.

Ter valor é ser escolhido à não tê-lo;
Vais manter contido o brio que torna
Mais fraca a dor que te mostra zelo...
Condenado ao círculo que te suborna.

Gênio escondido;
Falta de compreensão cativada.
Sem sentido ao senti-lo em palavras frouxas!
Unção comum, irreal e profanada;
Parecer retraído.

Paga-se uma conta real;
Volta-me à tona a verdade
Nos avanços em que contenho,
Para jamais utilizar a irrealidade.

Tudo aquilo que fôra demonstrado ser puro,
Não passou de um ato falho, sem valor.
Não me comove mais as reações de orgulho,
E nem me dói demais um querer sem amor:
Sem calor
Nem clamor.
Só um destino é valido
Para quem se sente inválido.

Continuo na estrada sem condução.
Apenas observo os trejeitos desastrosos,
E os ideais que são um senso em união,
Reunidos a vacilar perante os seres honrosos.

As raízes são mais fortes que os aprendizados olvidados.
A brutalidade torna-se orgulho diante da massa mais asnática;
Fico entristecido ao verificar que os valores foram trocados.
A naturalidade humana traz a comunhão entre seres enigmáticos;
Pelo fato servil, pela crença fastidiosa, original e histórica.

Conto estórias aos que me dão atenção,
Dôo carinho aos que me fazem viver.
Termino algumas breves relações inexatas
Que meu coração insiste em acolher;
Mas minha razão busca afastar qualquer emoção.

Nesse quarto, encontro-me.
Nesse mundo sou celibatário, perco-me.
Vejo a doença incrustada em meu ser;
Já termino a prosa! Não quero mais...

Quaderno (parte2 - Flo Menezes/Daniel Murray)

Sei que poucas pessoas vão ver, ouvir e comentar...

O retrato oval

Edgar Allan Poe


O castelo em que meu criado se aventurara a forçar entrada, em lugar de deixar-me passar uma noite ao relento, gravemente ferido como eu estava, era um daqueles edifícios mesclados de soturnidade e grandeza que por muito tempo carranquearam entre os Apeninos, tanto na realidade quanto na imaginação da Sra. Radcliffe. Ao que tudo indicava, fora abandonado havia pouco e temporariamente. Acomodamo-nos num dos quartos menores e menos suntuosamente mobiliados, que ficava num remoto torreão do edifício. Sua decoração era rica, porém esfarrapada e antiga. As paredes estavam forradas com tapeçarias e ornadas com diversos e multiformes troféus heráldicos, juntamente com um número inusual de espirituosas pinturas modernas em molduras de ricos arabescos dourados. Por essas pinturas, que pendiam das paredes não só de suas principais superfícies, mas de muitos recessos que a arquitetura bizarra do castelo fez necessários, por essas pinturas meu delírio incipiente, talvez, fizera-me tomar interesse profundo; de modo que ordenei a Pedro fechar os pesados postigos do quarto – visto que já era noite –, acender um alto candelabro que se encontrava
à cabeceira de minha cama e abrir amplamente as cortinas franjadas de veludo negro que a envolviam. Desejei que tudo isso fosse feito para que pudesse abandonar-me, ao menos alternativamente, se não adormecesse, à contemplação das pinturas e à leitura atenta de um pequeno volume encontrado sobre o travesseiro que se propunha a criticá-las e descrevê-las.

Por longo, longo tempo li, e com devoção e dedicação contemplei-as. Rápidas e gloriosas, as horas voavam e a meia-noite profunda veio. A posição do candelabro desagradava-me, e estendendo a mão com dificuldade, em vez de perturbar meu criado adormecido, ajeitei-o a fim de lançar seus raios de luz mais em cheio sobre o livro.

Mas a ação produziu um efeito completamente imprevisto. Os raios das numerosas velas (pois eram muitas) agora caíam num nicho do quarto que até o momento estivera mergulhado em profunda sombra por uma das colunas da cama. Assim, vi sob a luz vívida um quadro não notado antes. Era o retrato de uma jovem, quase mulher feita. Olhei a pintura apressadamente e fechei os olhos. Não foi a princípio claro para minha própria percepção por que fiz isso. Todavia, enquanto minhas pálpebras permaneciam dessa forma fechadas, revi na mente a reação de fechá-las. Foi um movimento impulsivo para ganhar tempo para pensar – para certificar-me de que minha vista não me enganara –, para acalmar e dominar minha fantasia para uma observação mais calma e segura. Em poucos momentos, novamente olhei fixamente a pintura.

O que agora via, certamente não podia e não queria duvidar, pois o primeiro clarão das velas sobre a tela dissipara o estupor de sonho que me roubava os sentidos, despertando-me imediatamente à realidade.

O retrato, já o disse, era o de uma jovem. Uma mera cabeça e ombros, feitos à maneira denominada tecnicamente de vinheta, muito ao estilo das cabeças favoritas de Sully. Os braços, o busto e as pontas dos radiantes cabelos dissolviam-se imperceptivelmente na vaga mas profunda sombra que formava o fundo do conjunto. A moldura era oval, ricamente dourada e filigranada à mourisca. Como objeto artístico, nada poderia ser mais admirável do que aquela pintura em si. Mas não seria a elaboração da obra nem a beleza imortal daquela face o que tão repentinamente e com veemência comovera-me. Tampouco teria minha fantasia, sacudida de seu meio-sono, tomado a cabeça pela de uma pessoa viva. Vi logo que as peculiaridades do desenho, do vinhetado e da moldura devem ter dissipado instantaneamente tal idéia – e até mesmo evitado sua cogitação momentânea. Pensando seriamente acerca desses pontos, permaneci, talvez uma hora, meio sentado, meio reclinado, com minha vista pregada ao retrato. Enfim, satisfeito com o verdadeiro segredo de seu efeito, caí de costas na cama. Descobrira o feitiço do quadro numa absoluta naturalidade de expressão, a qual primeiro espantou-me e por fim confundiu-me, dominou-me e aterrorizou-me. Com profundo e reverente temor, recoloquei o candelabro em sua posição anterior. Sendo a causa de minha profunda agitação colocada assim fora de vista, busquei avidamente o volume que tratava das pinturas e suas histórias. Dirigindo-me ao número que designava o retrato oval, li as vagas e singulares palavras que se seguem:

“Era uma donzela de raríssima beleza, não mais encantadora do que cheia de alegria. Má foi a hora em que viu, amou e desposou o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero, e tendo já na sua Arte uma esposa; ela, uma donzela de raríssima beleza, não mais encantadora do que cheia de alegria; toda luz e sorrisos, e travessa como uma corça nova; amando e acarinhando todas as coisas; odiando apenas a Arte, sua rival; temendo só a paleta, os pincéis e outros desfavoráveis instrumentos que a privavam do rosto de seu amado. Era, portanto, uma coisa terrível para essa dama ouvir o pintor falar de seu desejo de retratar justo sua jovem esposa. No entanto, ela era humilde e obediente, e posou submissa por muitas semanas na escura e alta câmara do torreão, onde a luz caía somente do teto sobre a pálida tela. Mas ele, o pintor, glorificava-se com sua obra, que continuava de hora a hora, dia a dia. E era um homem apaixonado, impetuoso e taciturno, que se perdia em devaneios; de maneira que não queria ver que a luz espectral que caía naquele torreão isolado debilitava a saúde e a vivacidade de sua esposa, que definhava visivelmente para todos, exceto para ele. Contudo, ela continuava a sorrir imóvel, docilmente, porque viu que o pintor (que tinha grande renome) adquiriu um fervoroso e ardente prazer em sua tarefa, e trabalhava dia e noite para pintar a que tanto o amava, aquela que a cada dia ficava mais desalentada e fraca. E, em verdade, alguns que viam o retrato falavam, em voz baixa, de sua semelhança como de uma poderosa maravilha, e uma prova não só da força do pintor como de seu profundo amor pela qual ele pintava tão insuperavelmente bem. Finalmente, como o trabalho aproximava-se de sua conclusão, ninguém mais foi admitido no torreão, pois o pintor enlouquecera com o ardor de sua obra, raramente desviando os olhos da tela, mesmo para olhar o rosto de sua esposa. Não queria ver que as tintas que espalhava na tela eram tiradas das faces da que posava junto a ele. E quando muitas semanas nocivas passaram e pouco restava a fazer, salvo uma pincelada na boca e um tom nos olhos, o espírito da dama novamente bruxuleou como a chama de uma lanterna. Então, a pincelada foi dada e o tom aplicado, e, por um momento, o pintor deteve-se extasiado diante da obra em que trabalhara. Porém, em seguida, enquanto ainda contemplava-a, ficou trêmulo, muito pálido e espantado, exclamando em voz alta: ‘Isto é de fato a própria Vida!’
Voltou-se repentinamente para olhar sua amada: estava morta!”