terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O SER DA LINGUAGEM SEGUNDO MICHEL FOUCAULT


Amigos e amigas,




CAPÍTULO 1. O SABER DAS SIMILITUDES: A REPRESENTAÇÃO COMO REPETIÇÃO


1.1  Preâmbulo


Na Renascença (século XVI), o saber da similitude era a estrela guia de todo conhecimento ocidental. Por essa relação dada pelas semelhanças, a representação era composta por uma linguagem que, no jogo dos signos visíveis e invisíveis, permitia a ordenação das coisas pelas palavras, ou seja, todo conhecimento daquele período era obstinado a decifrar, interpretar e comentar todos os símbolos a partir de uma representatividade semântica que configurava o mundo como pura repetição.
Neste primeiro ponto, ao estudarmos o capítulo II intitulado “La prose du monde” da obra Les mots et les choses, vamos ater-nos ao período marcado até o limiar do século XVII, atribuindo a essa epistémê algumas referências apontadas por Foucault a respeito de como se constituiu o saber da linguagem daquele dado momento[1]. Trata-se, portanto, de perguntar como se dava o conhecimento pela similitude: como poderia ser pensada a ordem dada pelo discurso a partir das coisas que se assemelhavam pelas palavras? Como eram reconhecidas as semelhanças entre uma ou outra coisa?
Desta feita, para responder a tais questões, poderemos, em linhas gerais, demarcar o procedimento arqueológico adotado por Foucault – no qual é o norte de todo nosso estudo – para, então, darmos prosseguimento às explicitações acerca das similitudes essencialmente divididas em quatro partes que são primordiais ao saber do século XVI. Logo em seguida, na parte final do capítulo, daremos vazão para uma explicação geral relativamente à formação do “ser da linguagem[2] e a sua constituição em um sistema ternário dos signos, com a intenção de ambientar o nosso leitor naquele primeiro período que aparece descrito na referida obra.


1.2  Uma conveniente vizinhança


A primeira forma de similitude apresentada por Foucault é a chamada convenientia. Nela, todas as coisas ficam em contato, muito próximas, a fim de conceberem vizinhanças que determinam o início e o fim de cada uma das formas do saber. É um movimento circular da relação entre as figuras que se misturam por conveniência, de tal modo que essa aproximação entre as duas partes designa uma semelhança que, na realidade, é apresentada como vizinhança dos lugares[3].
Destarte, Foucault passa a analisar a convenientia a partir de duas partes minuciosamente limítrofes, sendo a primeira justamente composta pela

(...) semelhança do lugar, do local onde a natureza colocou as duas coisas, similitude, pois, de propriedades; pois, neste continente natural que é o mundo, a vizinhança não é uma relação exterior entre as coisas, mas o signo de um parentesco ao menos obscuro[4].

Contudo, essa primeira parte se apresenta tão interior e “enigmática” que necessita de decifração para dar vazão à segunda parte da conveniência, ao qual podemos dizer que dela surgem novas semelhanças por uma sobreposição do que é comum. Sendo assim, o parentesco entre as figuras do saber fica efetivamente visível, deixando-as muito próximas, nessa dupla relação conveniente. E, assim, na vizinhança dos lugares, acontece a aproximação das coisas por estarem duplamente em conformidade umas em relação às outras, na medida em que são emparelhadas.
Os lugares tornam-se semelhantes, os signos se misturam em uma mesma e única relação. Por ser “conveniente”, ou seja, semelhante, a transfiguração do mundo se dá como um conjunto universal e ajustado entre as coisas. A convenientia aproxima os dois lados semelhantes numa relação puramente circular, fazendo-os enlaçarem-se, por um contato de proximidade, em um mesmo espaço[5]. O mundo se interioriza, o mesmo se efetiva como Mesmo, ou seja, cada lugar é o fim e o início de uma semelhança que se torna acomodada às circunstâncias: “e de círculos em círculos, as similitudes prosseguem retendo os extremos na sua distância”[6]. Por conseguinte, a convenientia é como uma tensão entre lados opostos que se aproximam por um parentesco contínuo e correspondente de parte a parte.


1.3  Correspondência espelhar


Logo a seguir, advém uma segunda similitude, a aemulatio. Por emulação Foucault afirma ser a correspondência das coisas no mundo, em que há uma “concorrência” a partir da distância entre elas. Aqui, o espaço já não mais aproxima as coisas como era concebido na convenientia e, por mais que haja correspondência entre ambas as similitudes, na aemulatio não há mais uma relação circular entre as figuras do saber; tudo o que era enlaçado por conveniência agora está distante, desatado, em uma relação sem retenção das extremidades, em um rompimento com o lugar comum entre as coisas. É como a imagem dispersa da relação entre espelho e reflexo, sem aproximações nem contatos[7].
Contudo, por haver uma distância entre as coisas, ocorre como que por “imitação” uma representação do mundo a partir de uma relação espelhar; “por sua reduplicação em espelho, o mundo abole a distância que lhe é própria; triunfa assim sobre o lugar que é dado a cada coisa”[8]. Deste modo, não é possível afirmar qual é o verdadeiro lado, e qual é o seu reflexo. Na emulação, as semelhanças entre os dois lados, por serem duplicadas, desdobram-se em um afastamento que, repetidamente, faz os reflexos entrarem em conflito, cujo espaço desse embate é justamente aquela distância referida à correspondência entre as coisas no mundo.
Entretanto, algumas dúvidas podem surgir acerca de qual dos dois lados do reflexo tem a primazia em relação ao outro. Qual das duas partes pode ser considerada aquela que tem um maior influxo sobre a outra? Qual é a imagem real e qual é a sua imitação? A resposta dada por Foucault é a seguinte:

Frequentemente não é possível dizê-lo, pois a emulação é uma espécie de geminação natural das coisas; (...) a emulação não deixa inertes, uma em face da outra, as duas figuras refletidas que ela opõe. Pode ocorrer a uma ser mais fraca e acolher forte influência daquela que vem a refletir-se no seu espelho passivo[9].

E essa passividade, segundo exemplifica Foucault, compara o êmulo da terra com a “força” das estrelas; sendo ela – a terra – apenas o reflexo estelar, cujo embate não está em posição de força igualitária entre as duas partes, ou seja, o céu tem forte influência sobre a terra, sem que esta lhe seja um adversário à altura. Por conseguinte, apresenta-se aqui, a descrição feita por Crollius, ao qual fica válida esta afirmação a respeito da inércia da terra em relação ao céu que, sem veemência, reflete-o de forma idêntica:

As estrelas (...) são a matriz de todas as ervas, e cada estrela do céu não é mais que a prefiguração espiritual de uma erva tal como a representa e, assim, como cada erva ou planta é uma estrela terrestre olhando o céu, assim também cada estrela é uma planta celeste em forma espiritual, a qual só pela matéria é diferente das terrestres (...), as plantas e as ervas celestes estão viradas para o lado da terra e olham diretamente as ervas que elas procriaram, infundindo-lhes alguma virtude particular[10].

Mas a similitude da emulação também pode ser um embate entre forças iguais, ou ainda, pode haver somente a separação de uma única coisa que se reflete em si mesma, com o mesmo “peso” de influência. Não há mais leis do espaço, muito menos há alguma distância entre duas figuras – ou entre dois “espelhos” que se refletem – de forma calma e passiva, como simples imagem, silenciosamente espelhada, de uma sobreposta à outra. A distância é, na realidade, o espaço entreaberto na qual ficam visíveis as figuras que a emulação transpõe. Tudo, aqui, mais uma vez, se assemelha em uma relação de “posse” entre as duas partes. O duplo é reduplicado pelo reflexo do espelho que, por seu turno, torna-se infinitamente semelhante, sem ser conveniente, como um grande competidor de si que concorre entre si em um mesmo eixo.


1.4  Convenientia e aemulatio superpostas


A analogia caracteriza-se como a terceira forma de similitude; provavelmente este conceito é entendido de maneira diversa no século XVI, relativamente ao que se considerava por ναλογία[11] no pensamento desde a Grécia Antiga à Idade Média. No período da Renascença, esta analogia abarca as duas formas de similitude anteriores – convenientia e aemulatio – em uma superposição de uma sobre a outra. Lembremos que a primeira se dá pela linguagem da formação das coisas em círculos gradativamente aproximados em um mesmo espaço[12]. A segunda representa-se pelo duplo confronto entre as coisas que se assemelham na distância refletida em um mesmo eixo da relação[13].
Na analogia as semelhanças não se constituem mais como signos visíveis, tal como nas duas primeiras similitudes; trata-se, agora, de uma sutileza maior nas relações entre as semelhanças, configurando “a partir de um mesmo ponto, um número indefinido de parentescos”[14]. Por conseguinte, a analogia tem uma imensa força nas relações de similitude, com a característica de dobrar-se sobre si mesma, em uma relação que marca silenciosa e ocultamente a sua não contestação.
Podemos fixar o exemplo de Foucault, a respeito deste grande poder da analogia sobre as relações de semelhança, à luz do pensamento de Césalpin:

A velha analogia da planta com o animal (...), Césalpin não a critica nem a põe de parte; reforça-a, ao contrário, multiplica-a por ela própria, quando descobre que a planta é um animal de pé, cujos princípios nutritivos sobem de baixo para cima, ao longo de uma haste que se estende como um corpo e se completa por uma cabeça – ramalhete, flores, folhas: relação inversa mas não contraditória com a analogia primeira (...)[15].

Ademais, essa analogia primeira dispõe os animais na relação de parentesco com as plantas, segundo Césalpin, em que “a rede venosa”, desses mesmos animais, “começa também na parte inferior do ventre e a veia principal sobe para o coração e a cabeça”[16]. Eis o ponto que podemos realçar acerca deste tipo de similitude: a conexão, ou semelhança, entre as coisas é um análogo per si numa relação de forças, cujo número de semelhanças é indeterminável, e o seu inverso visa sobre si mesmo incontestavelmente.
Contudo, esse ponto primordial, ou melhor, privilegiado da analogia, garante sua aplicação universal ao saber do mundo renascentista. Tudo converge ao reverso, no sentido polivalente das figuras do saber pelas quais, por aproximação, as relações não se alteram apenas se invertem. Eis, aqui, que emerge, pela primeira vez, a figura do homem como ponto principal da analogia. Não se trata, pois, do homem do século XIX – pelo qual estudaremos nas páginas posteriores –, mas, sim, do homem do século XVI que, por estar relativamente proporcional aos animais, às plantas, à terra, aos metais, às tempestades, ao Universo etc.[17], forma o espaço central das analogias. O homem está circundado por analogias, mas, ao mesmo tempo, há uma inversão de seu papel com as semelhanças que ele mesmo obtém do mundo; há, portanto, a transmissão das similitudes analogicamente refletidas, na relação inalterável deste grande sustentáculo das figuras do saber – que é o homem – com as coisas que, a partir dele, são outra vez representadas e irradiadas pelo mundo.


1.5  Simpatia e antipatia


A quarta e última forma de similitude é representada pelo “jogo das simpatias[18]. Diferentemente das três semelhanças anteriores, a simpatia não é previamente determinada, nela não existe um distanciamento, não há uma irradiação de suas partes pelo mundo. Ela liga e dá movimento às coisas, promove aproximações com uma força que tem o inconveniente poder de assimilação, ou seja, por ela todas as coisas transformam-se, ficam misturadas e tornam-se idênticas eliminando as individualidades.
No entanto, para que a simpatia não reduza tudo à figura do Mesmo, de forma idêntica, ela é contrabalanceada pelo seu par, a antipatia. Esta força oposta garante as individualidades e vai de encontro ao poder de assimilar da simpatia. Essa oposição vai além de um simples embate entre ambas, aqui, há um “ódio”, e não uma inversão passiva. O movimento se dá pela ligação e pela dispersão promovidas, respectivamente, pela simpatia e antipatia. Trata-se, portanto, de um combate feroz dentro desse mesmo par, a fim de que todas as coisas permaneçam o que são:

A identidade das coisas, o fato de que possam assemelhar-se a outras e aproximar-se delas, sem contudo se dissiparem, preservando sua singularidade, é o contrabalançar constante da simpatia e da antipatia que o garante[19].

Assim, como podemos ver essa dupla característica da quarta forma de similitude – concomitantemente “simpática” e “antipática” – tem autoridade máxima sobre as três similitudes anteriores. A convenientia com seus círculos vizinhos, a aemulatio com sua distância refletida identicamente em si mesma e as superposições da analogia se encontram mantidas e duplicadas nas relações da simpatia-antipatia, pelas quais as coisas passam a assemelharem-se tanto por aproximação, quanto por distanciamento. Enfim, este é o jogo das similitudes que são “comandadas” pela simpatia e antipatia que efetiva as semelhanças, pelas quais, por essa perspectiva, as coisas sempre se assemelham; o mundo é mantido idêntico. “O mesmo persiste o mesmo, trancafiado sobre si”[20].


1.6  A linguagem em um sistema ternário dos signos


Afinal, após analisarmos a cada uma das quatro similitudes podemos configurar, agora, o campo epistêmico do século XVI. Para este intento, é mister estarmos cônscios da importância das assinalações como marca indelével das semelhanças. Não há relação se, a partir das palavras, o terreno das assinalações não estiver presente entre as similitudes que comportam as coisas. Não há semelhança entre uma ou outra coisa se, em termos de decifração, uma palavra não dizer respeito ao que se pode conhecer do mundo. Eis, então, a grande roda do saber renascentista: as similitudes só se efetivam a partir do discurso que, pela simpatia e analogia, traduz a visibilidade na invisibilidade do mundo obscuro – as assinalações “resolvem” o enigma das coisas desde que sejam decifradas pelas palavras.
O conhecimento do século XVI se dá pela assimilação das semelhanças. É esse o ponto pelo qual Foucault começa a destacar que, de modo geral, o saber não se dá na diferença, mas na representação como repetição[21] de um mundo similar. Por esta razão, convém apontar o papel das similitudes na epistémê da Renascença:

Convenientia, aemulatio, analogia e simpatia nos dizem de que modo o mundo deve se dobrar sobre si mesmo, se duplicar, se refletir ou se encadear para que as coisas possam assemelhar-se. Dizem-nos os caminhos da similitude e por onde eles passam; não onde ela está nem como a vemos, nem com que marca a reconhecemos[22].

Essa marca pode ser a linguagem que, conforme as semelhanças são efetivadas pelas assinalações, dá ao mundo o seu estigma na decifração do Mesmo, ou seja, o discurso não se dá em um plano linear; há aqui, essencialmente, uma imbricação e uma ondulação na continuidade do saber da linguagem. As semelhanças são validadas por outra semelhança e, nesse sentido, a linguagem é designada conforme o que se segue:

O sistema das assinalações inverte a relação do visível com o invisível. A semelhança era a forma invisível daquilo que, do fundo do mundo, tornava as coisas visíveis; mas para que essa forma, por sua vez, venha até a luz, é necessária uma figura visível que a tire de uma profunda invisibilidade. Eis porque a face do mundo é coberta de brasões, de caracteres, de cifras, de palavras obscuras[23].

Todavia, os reflexos do mundo são garantidos pelas palavras que, na linguagem do século XVI, assinala a duplicação do Mesmo em uma repetição das coisas que os sustentam. A simpatia-antipatia cerca todas as outras semelhanças em um círculo único, no qual o mundo é comparável à fala dos homens que, a partir das palavras, encerra esse ciclo das similitudes enfim assinaladas. E é assim que se dá o ponto de apoio desta epistémê, em que o mundo torna-se o reino dos signos aos quais indicam o que deve, ou não, ser conhecido no decurso de sua significação; esse é, portanto o local onde se forma tal ambiente enigmático.
Como vimos, a simpatia é atrelada à analogia por comparar elementos a princípio diversos[24]. Entretanto, também há imbricação entre a emulação que pode ser reconhecida na analogia. Eis um exemplo dessa relação:

(...) os olhos são estrelas porque espalham a luz sobre os rostos como os astros na obscuridade, e porque os cegos são no mundo como os que têm clarividência no mais soturno da noite[25].

Além de podermos reconhecer a emulação na analogia, ainda podemos reconhecê-la também na conveniência, assim como sugere o exemplo a seguir:

(...) sabe-se, desde os gregos, que os animais fortes e corajosos têm a extremidade dos membros larga e bem desenvolvida como se seu vigor tivesse sido comunicado às partes mais distantes do seu corpo[26].

Todas as coisas são convenientes entre si, conforme há uma distância entre os seres logo que, em seguida, são aproximados por simpatia. Eis o elo que confirma o fechamento das relações de similitude: tudo é entendido como um ciclo, na proporção em que haja uma comparação, primeiramente invisível, de uma semelhança com outra semelhança que, posteriormente visível, é configurada pela assinalação que a reconhece. Porém, ainda é importante afirmarmos que a duplicação dos círculos das similitudes não acontece de forma plana, pois, há sempre um desnível na marca assinalada do signo, ao qual fica garantido o jogo das simpatias que, por sua vez, se dá na analogia entre as coisas às quais a aemulatio reflete essas mesmas coisas por convenientia entre o par simpatia-antipatia.
A partir dessa sequência, podemos verificar que há sempre um vão, um hiato entre todas as semelhanças na dimensão do conhecimento. Da marca à palavra, façamos presente um trecho característico a respeito do que podemos delimitar acerca do saber da linguagem renascentista:

Chamemos hermenêutica ao conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem fazer falar os signos e descobrir seu sentido; chamemos semiologia ao conjunto de conhecimentos e de técnicas que permitem distinguir onde estão os signos, definir o que os institui como signos, conhecer seus liames e as leis de seu encadeamento: o século XVI superpôs semiologia e hermenêutica na forma de similitude[27].

No entanto, vinculada a essa mesma linguagem, assim significada, na medida em que esta se assemelha ao que se indica, está presente a questão da “noção de mundo” na Renascença. Esse “mundo” na epistémê do século XVI é cheio de signos e insígnias, aos quais são compostos por enigmas que devem ser decifrados. Todo “conhecimento científico é composto pela erudição e também por uma boa dose de magia[28]. Há, aqui, um mistério pelo qual é preciso “decifrar a linguagem, enquanto signo das coisas[29]. Por conseguinte, Foucault fala de duas características da linguagem:

Divinatio e Eruditio são uma mesma hermenêutica. Ela se desenvolve, porém, segundo figuras semelhantes, em dois níveis diferentes: uma vai da marca muda à própria coisa (e faz falar a natureza); a outra vai do grafismo imóvel à clara palavra (restitui vida às linguagens adormecidas)[30].

Dessa forma, vimos que as duas características da linguagem – divina e erudita – caminham rumo a um mesmo “objetivo” duplamente constituído: há um primeiro movimento que é “o signo enquanto elemento a ser decifrado[31]; e, concomitantemente, há um segundo movimento que é “o signo a ser recolhido[32]. E, por conseguinte, tanto a divindade do signo, quanto a erudição da palavra, seja ao fazer a natureza falar, ou então ao dar vida “às linguagens adormecidas” – que é “objetivamente” essencial a todo conhecimento do século XVI –, trata-se, na realidade, de saber ler (conhecer) a verdade considerada literalmente eterna.
Por essa razão, a linguagem é fechada em si mesma, fragmentada, misteriosa e enigmática. A partir dela, as figuras do mundo estão todas imbricadas e misturadas, a ponto de se apresentarem como signos que desempenham o papel de decifrar a verdade eterna aos homens que, por seu turno, veem nessa condição o seu aspecto indicativo. As similitudes e as assinalações são relacionadas diretamente com a linguagem, formando, assim, uma tríade que é garantida pela escrita das palavras nas coisas do mundo. Tal escrita advém sob a forma de comentário na qual, pela interpretação das marcas visíveis de um texto primeiro, aparece como característica essencial ao século XVI. Há quem diga que a escrita vem antes da fala[33], e não somente pela ordem de aparecimento, mas antes, em consequência disso, há o sentido da primeira ter prioridade em relação à segunda. Dizem que a fala é como se fosse uma parte fêmea e passiva da linguagem; já a escrita aparece como sua característica motora, ou o seu “princípio macho”, sendo, por isso, um agente da linguagem. E, portanto, é somente a partir da escrita que a verdade eterna do mundo sobre os homens pode, pois, ser desvelada.
Após este longo percurso acerca dos círculos assinalados das similitudes, da “noção de mundo” renascentista e da primazia da escrita podemos, agora, abordar com maior precisão àquilo que o título da presente seção sugere: que diz respeito ao sistema ternário dos signos dados a partir de um ser único da linguagem. Aqui, as três unidades se dão pela formação entre o significante, o significado e a conjuntura[34]; elas estão diretamente representadas pelas marcas que formalmente designam, assinalam e assemelham os signos que, em vista disso, caracterizam-se como o conteúdo primordial desse mesmo sistema de três partes, ao qual se apresenta como uma figura única. Eis um excerto que exemplifica precisamente essa mesma noção ternária dos signos, que reaparece invertida na experiência da linguagem do século XVI:

(...) esta existe primeiramente, em seu ser bruto e primitivo, sob a forma simples, material, de uma escrita, de um estigma sobre as coisas, de uma marca espalhada pelo mundo e que faz parte de suas mais indeléveis figuras. Num sentido essa camada da linguagem é única e absoluta[35].

Por fim, ainda se fazem presentes outras duas formas do discurso renascentista, ao lado da supracitada distinção inversa da linguagem: em primeiro lugar, “o comentário, que retoma os signos dados com um novo propósito”; e, em segundo lugar, “o texto, cujo comentário supõe a primazia oculta por sob as marcas visíveis a todos”[36]. Assim a linguagem se caracteriza sob esses três aspectos, mas, com um único ser dado pela escrita. Não obstante, no final da Renascença, acontecer-se-á o desaparecimento desse sistema ternário das significações. A partir do século XVII, não mais existirá a tríade entre o significante, significado e conjuntura, mas sim, estará presente, a partir da lógica e, principalmente, da gramática de Port-Royal, uma disposição binária, que liga um significante com um significado. A pergunta renascentista sobre a forma como poderia se reconhecer um signo que designa literalmente o que ele significa, é substituída, no classicismo, pela questão de como um signo pode ter ligação direta com aquilo que ele significa. Finalmente, as palavras separar-se-ão das coisas.
















[1] Este capítulo versa sobre o predomínio da similitude (similitudo) relativamente à sua conexão infinita da linguagem (écriture) com a realidade das coisas no mundo renascentista. Não obstante, a respeito desse mesmo capítulo, Foucault recebera uma carta contestadora do pintor surrealista belga René Magritte, datada de 23 de maio de 1966, com o argumento de que não há semelhanças nas relações entre as coisas, mas tão-somente existem similitudes: “As palavras Semelhança e Similitude permitem ao senhor sugerir com força a presença – absolutamente estranha – do mundo e de nós. Entretanto, creio que essas duas palavras não são muito diferenciadas, os dicionários não são muito edificantes no que as distingue. Parece-me que, por exemplo, as ervilhas possuem relação de similitude entre si, ao mesmo tempo visível (sua cor, forma, dimensão) e invisível (sua natureza, sabor, peso). O mesmo se dá no que concerne ao falso e ao autêntico etc. As ‘coisas’ não possuem entre si semelhanças, elas têm ou não têm similitudes. Só ao pensamento é dado ser semelhante. Ele se assemelha sendo o que vê, ouve ou conhece, ele torna-se o que o mundo lhe oferece.”. Cf. FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Tradução Jorge Coli, 3ª edição, São Paulo, Paz e Terra, 2002, pp. 81-2.
[2] Cf. Ver a seção V “L’etre du langage” do capítulo II La prose du monde”. In: FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris. Gallimard, 1966, pp. 41-3. Tradução brasileira:_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, pp. 58-61.
[3] Esta distinção de “lugar” é muito mais um conjunto de signos aproximados do que uma similitude plena, ou seja, a vizinhança entre as figuras do saber não se constitui como a principal característica das similitudes. Ainda que seja a primeira forma com o qual era possível conhecer a partir da proximidade entre os objetos, a convenientia, por ajustamento em um lugar comum, não representa com toda força a parte essencial das semelhanças. Configura-se apenas como o primeiro complemento das outras três similitudes. Ibid., p. 22 / Ibid., p. 24.
[4] Ibid., p. 22 / Ibid., p. 24.
[5] Foucault indica que esse “espaço” na relação entre as coisas se dá por uma “aproximação gradativa”. Ibid., p. 23 / Ibid., p. 25.
[6] Ibid., p. 23 / Ibid., p. 26.
[7] Ver também a descrição de Aldrovandi no seu Monstrorum historia: “De longe, o rosto é o êmulo do céu e, assim como o intelecto do homem reflete, imperfeitamente, a sabedoria de Deus, assim os dois olhos, com sua claridade limitada, refletem a grande iluminação que, no céu, expandem o Sol e a Lua; a boca é Vênus, pois que por ela passam os beijos e as palavras de amor; o nariz dá a minúscula imagem do cetro de Júpiter e do caduceu de Mercúrio”. Ibid., pp. 23-4 / Ibid., pp. 26-7.
[8] Ibid., p 24 / Ibid., p. 27.
[9] Ibid., p. 24 / Ibid., p. 27.
[10] Ibid., p 24 / Ibid., pp. 27-8.
[11] Cabe salientar a distinção do conceito grego de analogia, na qual se trata de “uma igualdade de relações que supõe, pelo menos, quatro termos”: a/b = c/d. Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. V, 3, 1131a, pp. 30-1 / Cf. _________. Metafísica. V, 6, 1016b, pp. 30-5. Ver também o conceito tomista acerca da equidade que, em grande medida, tem forte influência advinda do conceito aristotélico de ναλογία. Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma teológica. Tradução Alexandre Corrêa, 2ª edição, Caxias do Sul, Sulina, 1980.
[12] Ver a nota 21 do presente estudo.
[13] “Os elos da emulação não formam uma cadeia como os elementos da conveniência: mas, antes, círculos concêntricos, refletidos e rivais”. FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris. Gallimard, 1966, p. 25. Tradução brasileira:_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 29.
[14] Ibid., p. 25 / Ibid., p 29.
[15] Ibid., p. 25 / Ibid., p. 29.
[16] Ibid., p.35 / Ibid., p. 30.
[17] Cf. Crollius. Traité des signatures, pp. 87-88 / P. Bellon. Histoire de la nature des oiseaux. Paris, 1555, p. 37 / Aldrovandi. Monstrorum historia, p. 4.
[18] Cf. FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris. Gallimard, 1966, p. 26. Tradução brasileira:_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 32.
[19] Ibid., pp. 27-8 / Ibid., p. 34.
[20] Ibid., p. 28 / Ibid., p. 35.
[21] Cf. Ver as várias distinções sobre o conceito “repetição” na representação. In: DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado, São Paulo, Graal, 2009.
[22] FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris. Gallimard, 1966, p. 28. Tradução brasileira:_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 35.
[23] Ibid., p 29 / Ibid., pp. 36-7.
[24] Cf. Ver os exemplos de Crollius a respeito da existência da “simpatia entre o acônito e os olhos”, e a “afinidade entre a noz e a cabeça”, como formas para curar doenças – por exemplo, a dor de cabeça – a partir das similitudes entre tais elementos. In: Ibid., p. 30 / Ibid., p. 37-8.
[25] Ibid., p. 30 / Ibid., p. 38.
[26] Ibid., p. 30 / Ibid., pp. 38-9.
[27] Ibid., p. 31 / Ibid., p. 40.
[28] Cf. AMADO, Wolmir. A Linguagem em Foucault, segundo “As Palavras e as Coisas”. Estudos. Goiânia: Editora PUC-GO, v. 21, n. 3/4, jul/dez, 1994, p. 6. Grifo nosso.
[29] Cf. Ibid., p. 6. Grifo nosso.
[30] FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris. Gallimard, 1966, p. 35. Tradução brasileira:_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 46.
[31] Cf. AMADO, Wolmir. A Linguagem em Foucault, segundo “As Palavras e as Coisas”. Estudos. Goiânia: Editora PUC-GO, v. 21, n. 3/4, jul/dez, 1994, p. 6. Grifo nosso.
[32] Cf. Ibid., p. 6. Grifo nosso.
[33] Cf. Blaise de Vigenère. Traité dês chiffres. Paris, 1587, pp. 1-2 / Claude de Duret. Trésor de l’histoire dês langues, pp. 19-20.
[34] Cf. No estoicismo a similitude era indicada pelo conceito grego de τύγxανον, no sentido de relacionar um acontecimento (acaso), uma coincidência, enfim, uma conjuntura na ligação entre o significado e o seu significante. In: FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris. Gallimard, 1966, p. 41. Tradução brasileira:_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 58. / Ver também o estudo de Pierre Hadot acerca da grande influência que Foucault teve do pensamento estóico, principalmente ao que doravante chamara de “cuidado de si”. In: HADOT, Pierre. Exercices spirituels et philosophie antique. Paris. Etudes Augustiniennes, 1981. Versão em inglês: _________. Philosophy as a Way of Life: spiritual exercises from Socrates to Foucault. Edição Arnold Davidson. Tradução Michael Chase. Oxford, Blackwell, 1995.
[35] Ibid., p. 42 / Ibid., p. 58.
[36] Ibid., p. 42 / Ibid., p. 58.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Linguagem, obra e literatura

Linguagem e literatura: da representação ao desejo

Eduardo de Araújo Bento

Começaremos a distinguir, na atual seção, o limite entre a epistémê clássica e a era moderna relativamente às caraterísticas constituintes do saber da linguagem entre essas duas épocas para, então, darmos prosseguimento às análises mais detalhadas a respeito da formação da filologia histórica. Este ponto se faz fundamental antes de começarmos a introduzir alguns aspectos que, a partir do século XIX – ou no final do século XVIII –, entram em “cena” na formação dos saberes que dão início à prática institucional das ciências humanas. Portanto o que será abordado, nas linhas posteriores, está diretamente vinculado ao que podemos inferir a respeito dos temas da representação e do desejo àquilo que, possivelmente chamamos, ou não, de literatura[1].

Contudo é mister que façamos algumas distinções entre o que é literatura, linguagem e obra. Para Foucault a literatura não é tão antiga em relação à própria linguagem; ele não considera que as obras de Miguel de Cervantes, ou de William Shakespeare, por exemplo, sejam realmente literárias no sentido estrito. Não que hoje não façam parte da literatura, no entanto, no tempo desses mesmos escritores, não fora possível conceberem essas obras como sendo literatura, pois, por se tratarem de textos que ainda tinham um ranço greco-romano, vinculado com as épocas mais longínquas da história, havia simplesmente uma relação de linguagem: podemos dizer que a literatura é do nosso tempo, da nossa modernidade e só faz sentido a nós mesmos.

Por isso é que se distinguem precisamente essas três características supracitadas (linguagem, obra e literatura). Em primeiro lugar surge a linguagem que “é o murmúrio de tudo que é pronunciado e, ao mesmo tempo, o sistema transparente que faz com que, quando falamos, sejamos compreendidos”[2]; de modo geral, a linguagem é a um tempo o acúmulo das palavras na história e o sistema central de uma língua. Além disso, em segundo lugar, emerge-se a obra que está dentro da própria linguagem e nela constrói o seu espaço – assim como a linguagem se fez moradia dentro do pensamento e, portanto, na representação classicista –; a obra fica imóvel no interior da linguagem, ao ponto de deixar-se densa na opacidade dos signos e das palavras, por fixar nesse espaço todo rumor analógico que advém da fala dos homens, de tal sorte que se constitui assim o seu caráter enigmático e possivelmente turvo. Por conseguinte, em terceiro lugar, aparece enfim a literatura, na qual não podemos considerar como sendo precisamente linguagem ou obra. A literatura não é, pois, um espaço geral e universal por onde se aloja a linguagem e a obra. Ela é como um terceiro ponto, ou seja, é como se fosse o ápice de um triângulo que se faz presente na relação entre a linguagem e a obra e vice-versa.

No entanto, como ainda estamos a traçar o limite entre o classicismo e a modernidade, temos de considerar que, na experiência dos séculos XVII e XVIII, a literatura imbricava-se entre as obras da linguagem. Ela era simplesmente conveniente à linguagem comum dos homens, reunida em seu uso e que constituía, assim, uma obra. A literatura na idade clássica era nada mais que um quesito linguístico de memória, de aproximações entre o saber da linguagem e a obra, isto é, a literatura se dava numa relação passiva com a obra e a linguagem na epistémê do chamado período barroco. Doravante há um momento na história em que a literatura perde esse aspecto meramente passivo e passa a ser prática, ou melhor, torna-se ativa e, ao mesmo tempo, ainda mais profunda e obscura quando ela se eleva relativamente à obra e a linguagem; podemos dizer que essa mudança de um momento passivo da literatura para outro ativo se deu no final do século XVIII ou no início do século XIX – em volta dos trabalhos de Chateaubriand, La Harpe, Mme de Staël etc. E, portanto, deixemos que as próprias palavras de Foucault nos digam o que a literatura possivelmente é nessa relação puramente histórica com a modernidade:

A literatura não é o fato de uma linguagem transformar-se em obra, nem o fato de uma obra ser fabricada com linguagem; a literatura é um terceiro ponto, diferente da linguagem e da obra, exterior à linha reta entre a obra e a linguagem, que, por isso, desenha um espaço vazio, (...) na distância, na separação, no triângulo, na dispersão de origem onde a obra, a literatura e a linguagem se ofuscam mutuamente; isto é, se iluminam e cegam umas às outras para que, talvez graças a isso, algo de seu ser venha sorrateiramente até nós[3].

Todavia, de volta ao classicismo, o ser da linguagem é a representação, e a literatura está, pois, aprisionada nessa relação onde o campo epistêmico está armado de forma coerente e homogênea, mas que, ao mesmo tempo, está num profundo desequilíbrio justamente porque é a representação que comanda e ordena os saberes – há um tanto de instabilidade na ordem clássica: a linguagem se vê desvanecida pela gramática geral; a natureza e a vida dos seres se acham simplesmente classificadas e determinadas pela história natural; a necessidade e o desejo se acham demarcadas na estrutura do valor e da moeda pela análise das riquezas. “A análise da representação tem, portanto, valor determinante para todos os domínios empíricos"[4]; inclusive para a relação entre linguagem e literatura. Com isso o classicismo se fecha em um sistema da ordem, em uma nomenclatura que seja igualmente uma taxinomia, pela qual é possível conhecer as coisas pelo jogo de identidades e diferenças, num sistema de signos transparente à continuidade dos seres (continnum), em que a própria representação se acha num espaço interno e, ao mesmo tempo aberto onde ela mesma se representa e se efetiva. A linguagem é a representação das palavras e, por conseguinte a literatura é nada mais, nada menos, que um texto preconcebido de palavras; “palavras como as outras, mas suficientemente e de tal modo escolhidas que, através delas, passe algo inefável”[5]. Não obstante, já na modernidade, esse inefável aparece absolutamente como um não inefável na experiência da literatura com a linguagem. Podemos entender, portanto, a literatura como se fosse uma fábula, e isso no sentido estrito do termo. Ela pode ser dita numa linguagem que, em seu interior e distante do que outrora fora a representação, torna-se um discurso possível e diferentemente constituído em relação ao seu modo de ser anterior (classicista), pelo qual se reportava diretamente ao indizível, ao silêncio, ao segredo das palavras e dos signos.

Com o fim do pensamento clássico, e a dissolução da gramática geral, a representação perde toda sua primazia e perde, igualmente, sua grande força de ordenar os saberes. Deixa de ter o seu poder de compô-los, ou ao menos, os libera de seu campo representativo e, portanto, a literatura se encontra nesse terreno em que o ato de representar deixa de ter uma função fundamental na epistémê moderna; é por essas razões que a literatura se descola da linguagem para ganhar existência como um tipo de linguagem “autônoma”, mas que se oscila constantemente sobre si mesma. “O espírito obscuro de um povo que fala” escapa, segundo afirma Foucault, “ao modo de ser da representação”[6] na passagem da era clássica para a modernidade:

E esta será duplicada, limitada, guarnecida, mistificada talvez, regida, em todo o caso, do exterior, pelo enorme impulso de uma liberdade, ou de um desejo, ou de uma vontade que se apresentarão como o reverso metafísico da consciência. Alguma coisa como um querer ou uma força vai surgir na experiência moderna – constituindo-a talvez, assinalando, em todo o caso, que a idade clássica acaba de terminar e com ela o reino do discurso representativo, a dinastia de uma representação significando-se a si mesma e enunciando, na sequência de suas palavras, a ordem adormecida das coisas[7].

Além disso, este é o momento em que surge repentinamente a questão do desejo a partir da análise da obra “literária” de Sade. No limite do classicismo, ou limiar da modernidade, os textos de Sade são delimitados por Foucault como o grande acontecimento daquela época. O desejo e a representação do discurso entram em um profundo equilíbrio que, em primeira instância, se faz precário em sua ordem e, em última instância, esse equilíbrio é o que justamente marca a Lei e o Limite da ordem do discurso. Ainda atrelada à questão desse desejo como limite do classicismo, está o papel do libertino que aparece descrito por Foucault como um “personagem” que vê na representação sua função plenamente ordenada, isto é, “toda representação deve animar-se logo no corpo vivo do desejo, todo desejo deve enunciar-se na pura luz de um discurso representativo”[8]. Portanto, há na obra de Sade um ordenamento imoderado ou desregrado da representação; o que marca significativamente esse aspecto é a constituição de “cenas” que, em seu interior, garante certo equilíbrio entre a combinação dos corpos (Ars combinatória) com a ordem das razões.

Do mesmo modo que o personagem de Dom Quixote marcou o limite da Renascença e o início do classicismo, as personagens Justine e Juliette de Sade possivelmente aparecem no limiar da cultura moderna, isso segundo afirma Foucault. Em Les mots et les choses a obra prima de Miguel de Cervantes é analisada nas suas duas partes e, como cada parte se apresenta de forma diversa uma em relação à outra, Foucault faz duas ponderações que se correspondem diretamente a essas partes do romance, principalmente a segunda, com as figuras de Justine e de Juliette. Em suma, eis como se dá a análise das duas partes de Dom Quixote:

O herói de Cervantes, lendo as relações entre o mundo e a linguagem como se fazia no século XVI, decifrando, unicamente pelo jogo da semelhança, castelos nas estalagens e damas nas camponesas, aprisionava-se, sem o saber, no mundo da pura representação; mas, visto que essa representação só tinha por lei a similitude, não podia deixar de aparecer sob a forma irrisória do delírio. Ora, na segunda parte do romance, Dom Quixote recebia desse mundo representado sua verdade e sua lei; não lhe restava mais que esperar desse livro onde nascera, que não lera, mas cujo curso devia seguir, um destino que doravante lhe era imposto pelos outros. Bastava-lhe deixar-se viver num castelo onde ele próprio, que penetrara por sua loucura no mundo da pura representação, se tornava finalmente pura e simples personagem no artifício de uma representação[9].

Na decadência da idade clássica, podemos ver que não há mais a primazia da representação relativamente à similitude renascentista; agora o que está em jogo é a violenta repetição do desejo acima dos limites da representação. É justamente essa consideração que se faz a respeito da segunda parte do romance de Miguel de Cervantes, na qual podemos vincular, em grande medida, a personagem Justine de Sade com Dom Quixote; para ela só há ligação entre o desejo e a representação a partir de outra representação, isto é, sua inocência, que aparece como um terceiro objeto entre o desejo e a representação – como um Outro que se faz presente nessa relação –, só a faz conhecer o desejo de forma branda, que se dá somente na aparência exterior de uma representação fria e distante. Ademais, a outra personagem de Sade, Juliette, tem os seus desejos compreendidos por completo na representação, constituindo assim um conjunto de discursos e cenas que se reportam diretamente à sua vida e desenrolam, “ao longo dos desejos, das violências, das selvagerias e da morte, o quadro cintilante da representação”[10]. Todavia, a formação desse quadro se dá de forma sutil e, ao mesmo tempo, transparente aos desejos que se concentram e se multiplicam dentro da representação, assim como fizera Dom Quixote que, ao imaginar que desvelava os caminhos do mundo no qual acreditava cegamente nas similitudes, só estava cada vez mais imerso no enovelamento de suas próprias representações. Juliette se dá, portanto, na clausura da idade clássica. Em que todas as possibilidades do desejo se acham fechadas sobre si mesmas, em uma representação que tenta aclarar-se pelo discurso, visando nomear tudo aquilo que lhe dê um prolongamento. Sade se efetiva, pois, no limite do classicismo, ou melhor, na sua iminente crise...

A partir dele, a violência, a vida e a morte, o desejo, a sexualidade vão estender, por sob a representação, uma imensa camada de sombra, que nós agora tentamos retomar como podemos, em nosso discurso, em nossa liberdade, em nosso pensamento. Mas nosso pensamento é tão curto, nossa liberdade tão submissa, nosso discurso tão repisado que é preciso realmente nos darmos conta de que, no fundo, essa sombra subterrânea é um poço de dificuldades[11].

Contudo é assim que podemos começar a analisar a modernidade dentro dos limites do pensamento e além da representação, a partir do momento em que entendamos que há essa ruptura com a época anterior e que, de certo modo, essa mesma representação sai de seu espaço privilegiado para ser, portanto, relegada a uma condição de reapresentação de seu próprio lugar dado pelas características universais do Desejo. A literatura no século XIX se encontra presa à historicidade, e não nega, ou acolhe, pois, a sucessão de suas obras, mas atua como se fosse uma negação da própria literatura. E assim podemos dizer que “todo o ato literário se apresenta e toma consciência de si como transgressão da essência pura e inacessível da literatura”[12]. A linguagem também se vê nesse novo terreno do século XIX, em que sua função outrora atribuída à gramática geral será substituída por uma intencionalidade histórica, constituída a partir de uma filologia que configura o quadrilátero da linguagem de forma puramente lógica, sendo assim, diferentemente do que ele fora entendido até a metade do século XVIII (...).


[1] Cabe salientar que a nossa hipótese de vincular a linguagem enquanto representação com a literatura se dá nas distinções do conhecimento entre a era clássica e a modernidade. Para este intento relacionamos a última seção do capítulo VI de Les mot et les choses, intitulada “Le désir et la représentation”, com o texto de uma conferência pronunciada por Foucault nas Facultés Universitaires Saint-Louis, de Bruxelas, nos dias 18 e 19 de março de 1964, que aborda os temas da linguagem e principalmente da literatura. Nossa tentativa está fortemente ligada ao que Foucault considera como uma ruptura do pensamento acerca do que fora a linguagem no classicismo, e do que ela é agora, na era moderna; a literatura possivelmente é um dos principais fatos ocorridos na história do classicismo à idade moderna, analisada, pois, em suas principais descontinuidades, pela estratégia arqueológica.

[2] Cf. Texto da conferência pronunciada por Foucault nas Facultés Universitaires Saint-Louis, de Bruxelas, nos dias 18 e 19 de março de 1964. Tradução de Roberto Machado. In: MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura, 3ª edição, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000, p.140.

[3] Cf. Ibid., p.141.

[4] FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris. Gallimard, 1966, p. 168. Tradução brasileira:_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 288. Grifo nosso.

[5] Cf. MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura, 3ª edição, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000, p.141.

[6] FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris. Gallimard, 1966, p. 168. Tradução brasileira:_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 289.

[7] Ibid., p. 168 / Ibid., p. 289.

[8] Ibid., p. 169 / Ibid., p. 290.

[9] Ibid., p. 169 / Ibid., pp. 290.

[10] Ibid., p. 169 / Ibid., pp. 291.

[11] Ibid., p. 170 / Ibid., pp. 292.

[12] Cf. MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura, 3ª edição, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000, p.143.