quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Linguagem, obra e literatura

Linguagem e literatura: da representação ao desejo

Eduardo de Araújo Bento

Começaremos a distinguir, na atual seção, o limite entre a epistémê clássica e a era moderna relativamente às caraterísticas constituintes do saber da linguagem entre essas duas épocas para, então, darmos prosseguimento às análises mais detalhadas a respeito da formação da filologia histórica. Este ponto se faz fundamental antes de começarmos a introduzir alguns aspectos que, a partir do século XIX – ou no final do século XVIII –, entram em “cena” na formação dos saberes que dão início à prática institucional das ciências humanas. Portanto o que será abordado, nas linhas posteriores, está diretamente vinculado ao que podemos inferir a respeito dos temas da representação e do desejo àquilo que, possivelmente chamamos, ou não, de literatura[1].

Contudo é mister que façamos algumas distinções entre o que é literatura, linguagem e obra. Para Foucault a literatura não é tão antiga em relação à própria linguagem; ele não considera que as obras de Miguel de Cervantes, ou de William Shakespeare, por exemplo, sejam realmente literárias no sentido estrito. Não que hoje não façam parte da literatura, no entanto, no tempo desses mesmos escritores, não fora possível conceberem essas obras como sendo literatura, pois, por se tratarem de textos que ainda tinham um ranço greco-romano, vinculado com as épocas mais longínquas da história, havia simplesmente uma relação de linguagem: podemos dizer que a literatura é do nosso tempo, da nossa modernidade e só faz sentido a nós mesmos.

Por isso é que se distinguem precisamente essas três características supracitadas (linguagem, obra e literatura). Em primeiro lugar surge a linguagem que “é o murmúrio de tudo que é pronunciado e, ao mesmo tempo, o sistema transparente que faz com que, quando falamos, sejamos compreendidos”[2]; de modo geral, a linguagem é a um tempo o acúmulo das palavras na história e o sistema central de uma língua. Além disso, em segundo lugar, emerge-se a obra que está dentro da própria linguagem e nela constrói o seu espaço – assim como a linguagem se fez moradia dentro do pensamento e, portanto, na representação classicista –; a obra fica imóvel no interior da linguagem, ao ponto de deixar-se densa na opacidade dos signos e das palavras, por fixar nesse espaço todo rumor analógico que advém da fala dos homens, de tal sorte que se constitui assim o seu caráter enigmático e possivelmente turvo. Por conseguinte, em terceiro lugar, aparece enfim a literatura, na qual não podemos considerar como sendo precisamente linguagem ou obra. A literatura não é, pois, um espaço geral e universal por onde se aloja a linguagem e a obra. Ela é como um terceiro ponto, ou seja, é como se fosse o ápice de um triângulo que se faz presente na relação entre a linguagem e a obra e vice-versa.

No entanto, como ainda estamos a traçar o limite entre o classicismo e a modernidade, temos de considerar que, na experiência dos séculos XVII e XVIII, a literatura imbricava-se entre as obras da linguagem. Ela era simplesmente conveniente à linguagem comum dos homens, reunida em seu uso e que constituía, assim, uma obra. A literatura na idade clássica era nada mais que um quesito linguístico de memória, de aproximações entre o saber da linguagem e a obra, isto é, a literatura se dava numa relação passiva com a obra e a linguagem na epistémê do chamado período barroco. Doravante há um momento na história em que a literatura perde esse aspecto meramente passivo e passa a ser prática, ou melhor, torna-se ativa e, ao mesmo tempo, ainda mais profunda e obscura quando ela se eleva relativamente à obra e a linguagem; podemos dizer que essa mudança de um momento passivo da literatura para outro ativo se deu no final do século XVIII ou no início do século XIX – em volta dos trabalhos de Chateaubriand, La Harpe, Mme de Staël etc. E, portanto, deixemos que as próprias palavras de Foucault nos digam o que a literatura possivelmente é nessa relação puramente histórica com a modernidade:

A literatura não é o fato de uma linguagem transformar-se em obra, nem o fato de uma obra ser fabricada com linguagem; a literatura é um terceiro ponto, diferente da linguagem e da obra, exterior à linha reta entre a obra e a linguagem, que, por isso, desenha um espaço vazio, (...) na distância, na separação, no triângulo, na dispersão de origem onde a obra, a literatura e a linguagem se ofuscam mutuamente; isto é, se iluminam e cegam umas às outras para que, talvez graças a isso, algo de seu ser venha sorrateiramente até nós[3].

Todavia, de volta ao classicismo, o ser da linguagem é a representação, e a literatura está, pois, aprisionada nessa relação onde o campo epistêmico está armado de forma coerente e homogênea, mas que, ao mesmo tempo, está num profundo desequilíbrio justamente porque é a representação que comanda e ordena os saberes – há um tanto de instabilidade na ordem clássica: a linguagem se vê desvanecida pela gramática geral; a natureza e a vida dos seres se acham simplesmente classificadas e determinadas pela história natural; a necessidade e o desejo se acham demarcadas na estrutura do valor e da moeda pela análise das riquezas. “A análise da representação tem, portanto, valor determinante para todos os domínios empíricos"[4]; inclusive para a relação entre linguagem e literatura. Com isso o classicismo se fecha em um sistema da ordem, em uma nomenclatura que seja igualmente uma taxinomia, pela qual é possível conhecer as coisas pelo jogo de identidades e diferenças, num sistema de signos transparente à continuidade dos seres (continnum), em que a própria representação se acha num espaço interno e, ao mesmo tempo aberto onde ela mesma se representa e se efetiva. A linguagem é a representação das palavras e, por conseguinte a literatura é nada mais, nada menos, que um texto preconcebido de palavras; “palavras como as outras, mas suficientemente e de tal modo escolhidas que, através delas, passe algo inefável”[5]. Não obstante, já na modernidade, esse inefável aparece absolutamente como um não inefável na experiência da literatura com a linguagem. Podemos entender, portanto, a literatura como se fosse uma fábula, e isso no sentido estrito do termo. Ela pode ser dita numa linguagem que, em seu interior e distante do que outrora fora a representação, torna-se um discurso possível e diferentemente constituído em relação ao seu modo de ser anterior (classicista), pelo qual se reportava diretamente ao indizível, ao silêncio, ao segredo das palavras e dos signos.

Com o fim do pensamento clássico, e a dissolução da gramática geral, a representação perde toda sua primazia e perde, igualmente, sua grande força de ordenar os saberes. Deixa de ter o seu poder de compô-los, ou ao menos, os libera de seu campo representativo e, portanto, a literatura se encontra nesse terreno em que o ato de representar deixa de ter uma função fundamental na epistémê moderna; é por essas razões que a literatura se descola da linguagem para ganhar existência como um tipo de linguagem “autônoma”, mas que se oscila constantemente sobre si mesma. “O espírito obscuro de um povo que fala” escapa, segundo afirma Foucault, “ao modo de ser da representação”[6] na passagem da era clássica para a modernidade:

E esta será duplicada, limitada, guarnecida, mistificada talvez, regida, em todo o caso, do exterior, pelo enorme impulso de uma liberdade, ou de um desejo, ou de uma vontade que se apresentarão como o reverso metafísico da consciência. Alguma coisa como um querer ou uma força vai surgir na experiência moderna – constituindo-a talvez, assinalando, em todo o caso, que a idade clássica acaba de terminar e com ela o reino do discurso representativo, a dinastia de uma representação significando-se a si mesma e enunciando, na sequência de suas palavras, a ordem adormecida das coisas[7].

Além disso, este é o momento em que surge repentinamente a questão do desejo a partir da análise da obra “literária” de Sade. No limite do classicismo, ou limiar da modernidade, os textos de Sade são delimitados por Foucault como o grande acontecimento daquela época. O desejo e a representação do discurso entram em um profundo equilíbrio que, em primeira instância, se faz precário em sua ordem e, em última instância, esse equilíbrio é o que justamente marca a Lei e o Limite da ordem do discurso. Ainda atrelada à questão desse desejo como limite do classicismo, está o papel do libertino que aparece descrito por Foucault como um “personagem” que vê na representação sua função plenamente ordenada, isto é, “toda representação deve animar-se logo no corpo vivo do desejo, todo desejo deve enunciar-se na pura luz de um discurso representativo”[8]. Portanto, há na obra de Sade um ordenamento imoderado ou desregrado da representação; o que marca significativamente esse aspecto é a constituição de “cenas” que, em seu interior, garante certo equilíbrio entre a combinação dos corpos (Ars combinatória) com a ordem das razões.

Do mesmo modo que o personagem de Dom Quixote marcou o limite da Renascença e o início do classicismo, as personagens Justine e Juliette de Sade possivelmente aparecem no limiar da cultura moderna, isso segundo afirma Foucault. Em Les mots et les choses a obra prima de Miguel de Cervantes é analisada nas suas duas partes e, como cada parte se apresenta de forma diversa uma em relação à outra, Foucault faz duas ponderações que se correspondem diretamente a essas partes do romance, principalmente a segunda, com as figuras de Justine e de Juliette. Em suma, eis como se dá a análise das duas partes de Dom Quixote:

O herói de Cervantes, lendo as relações entre o mundo e a linguagem como se fazia no século XVI, decifrando, unicamente pelo jogo da semelhança, castelos nas estalagens e damas nas camponesas, aprisionava-se, sem o saber, no mundo da pura representação; mas, visto que essa representação só tinha por lei a similitude, não podia deixar de aparecer sob a forma irrisória do delírio. Ora, na segunda parte do romance, Dom Quixote recebia desse mundo representado sua verdade e sua lei; não lhe restava mais que esperar desse livro onde nascera, que não lera, mas cujo curso devia seguir, um destino que doravante lhe era imposto pelos outros. Bastava-lhe deixar-se viver num castelo onde ele próprio, que penetrara por sua loucura no mundo da pura representação, se tornava finalmente pura e simples personagem no artifício de uma representação[9].

Na decadência da idade clássica, podemos ver que não há mais a primazia da representação relativamente à similitude renascentista; agora o que está em jogo é a violenta repetição do desejo acima dos limites da representação. É justamente essa consideração que se faz a respeito da segunda parte do romance de Miguel de Cervantes, na qual podemos vincular, em grande medida, a personagem Justine de Sade com Dom Quixote; para ela só há ligação entre o desejo e a representação a partir de outra representação, isto é, sua inocência, que aparece como um terceiro objeto entre o desejo e a representação – como um Outro que se faz presente nessa relação –, só a faz conhecer o desejo de forma branda, que se dá somente na aparência exterior de uma representação fria e distante. Ademais, a outra personagem de Sade, Juliette, tem os seus desejos compreendidos por completo na representação, constituindo assim um conjunto de discursos e cenas que se reportam diretamente à sua vida e desenrolam, “ao longo dos desejos, das violências, das selvagerias e da morte, o quadro cintilante da representação”[10]. Todavia, a formação desse quadro se dá de forma sutil e, ao mesmo tempo, transparente aos desejos que se concentram e se multiplicam dentro da representação, assim como fizera Dom Quixote que, ao imaginar que desvelava os caminhos do mundo no qual acreditava cegamente nas similitudes, só estava cada vez mais imerso no enovelamento de suas próprias representações. Juliette se dá, portanto, na clausura da idade clássica. Em que todas as possibilidades do desejo se acham fechadas sobre si mesmas, em uma representação que tenta aclarar-se pelo discurso, visando nomear tudo aquilo que lhe dê um prolongamento. Sade se efetiva, pois, no limite do classicismo, ou melhor, na sua iminente crise...

A partir dele, a violência, a vida e a morte, o desejo, a sexualidade vão estender, por sob a representação, uma imensa camada de sombra, que nós agora tentamos retomar como podemos, em nosso discurso, em nossa liberdade, em nosso pensamento. Mas nosso pensamento é tão curto, nossa liberdade tão submissa, nosso discurso tão repisado que é preciso realmente nos darmos conta de que, no fundo, essa sombra subterrânea é um poço de dificuldades[11].

Contudo é assim que podemos começar a analisar a modernidade dentro dos limites do pensamento e além da representação, a partir do momento em que entendamos que há essa ruptura com a época anterior e que, de certo modo, essa mesma representação sai de seu espaço privilegiado para ser, portanto, relegada a uma condição de reapresentação de seu próprio lugar dado pelas características universais do Desejo. A literatura no século XIX se encontra presa à historicidade, e não nega, ou acolhe, pois, a sucessão de suas obras, mas atua como se fosse uma negação da própria literatura. E assim podemos dizer que “todo o ato literário se apresenta e toma consciência de si como transgressão da essência pura e inacessível da literatura”[12]. A linguagem também se vê nesse novo terreno do século XIX, em que sua função outrora atribuída à gramática geral será substituída por uma intencionalidade histórica, constituída a partir de uma filologia que configura o quadrilátero da linguagem de forma puramente lógica, sendo assim, diferentemente do que ele fora entendido até a metade do século XVIII (...).


[1] Cabe salientar que a nossa hipótese de vincular a linguagem enquanto representação com a literatura se dá nas distinções do conhecimento entre a era clássica e a modernidade. Para este intento relacionamos a última seção do capítulo VI de Les mot et les choses, intitulada “Le désir et la représentation”, com o texto de uma conferência pronunciada por Foucault nas Facultés Universitaires Saint-Louis, de Bruxelas, nos dias 18 e 19 de março de 1964, que aborda os temas da linguagem e principalmente da literatura. Nossa tentativa está fortemente ligada ao que Foucault considera como uma ruptura do pensamento acerca do que fora a linguagem no classicismo, e do que ela é agora, na era moderna; a literatura possivelmente é um dos principais fatos ocorridos na história do classicismo à idade moderna, analisada, pois, em suas principais descontinuidades, pela estratégia arqueológica.

[2] Cf. Texto da conferência pronunciada por Foucault nas Facultés Universitaires Saint-Louis, de Bruxelas, nos dias 18 e 19 de março de 1964. Tradução de Roberto Machado. In: MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura, 3ª edição, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000, p.140.

[3] Cf. Ibid., p.141.

[4] FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris. Gallimard, 1966, p. 168. Tradução brasileira:_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 288. Grifo nosso.

[5] Cf. MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura, 3ª edição, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000, p.141.

[6] FOUCAULT, Michel. Les mots et les choses. Paris. Gallimard, 1966, p. 168. Tradução brasileira:_________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail, 9ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 289.

[7] Ibid., p. 168 / Ibid., p. 289.

[8] Ibid., p. 169 / Ibid., p. 290.

[9] Ibid., p. 169 / Ibid., pp. 290.

[10] Ibid., p. 169 / Ibid., pp. 291.

[11] Ibid., p. 170 / Ibid., pp. 292.

[12] Cf. MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura, 3ª edição, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000, p.143.

2 comentários:

  1. Perfeito, mew! Brisa master! huauhahuh Vou começar a ler inteiro ou o senhor vai me passar uma nova versão?

    abç

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